FÉ E LIBERDADE





A Carta aos Gálatas é chamada de manifesto da liberdade cristã. Convém entender bem esta denominação. O problema que provocou a carta foi a infiltração dos judaizantes, induzindo as comunidades a assumir as práticas da Lei judaica. Naquela época, no meio gentio, provavelmente a pregação de Paulo era tida como uma variante do judaísmo.

Os adversários de Paulo, aos olhos dos impressionáveis gálatas, representariam o judaísmo legítimo, com circuncisão e tudo, enquanto Paulo poderia passar por um judeu degenerado, apregoando um judaísmo diluído. Talvez por isso Paulo acusa seus opositores de não observarem a Lei (5,3; 6,13).


Não se sabe se esses opositores de Paulo eram judeu-cristãos judaizantes ou judeus não-cristãos em busca de prosélitos, isto é, gentios que se convertiam ao judaísmo. Seja como for, à tentação de adotar a Lei judaica, Paulo opõe o seu Evangelho da salvação pela fé em Jesus Cristo e não pelas obras da Lei.




Fé não é a aceitação intelectual de verdades, dizer “amém” às fórmulas do catecismo, mas significa adesão pessoal e incondicional. Se Paulo apregoa a salvação pela fé, não se trata de um cristianismo que se contente em professar um “Credo”, mas de um cristianismo prático, mediante o qual a pessoa mostre que adere a Jesus Cristo e o segue. Essa adesão se manifesta na imitação da prática de Jesus e só é possível porque o Espírito de Jesus vem para o coração de quem a ele adere (4,6) e produz os seus frutos (5,22-23a).


Por outro lado, se Paulo diz que as obras não salvam, ele não rejeita a prática das obras, pois a fé “atua pela caridade” (5,6). Ele rejeita, sim, a capacidade salvífica das observâncias religiosas. Isso com base, primeiro, na sua experiência: no caminho da Damasco, Jesus Cristo Crucificado irrompeu na sua vida. Depois, pelo fato de esse Cristo Ressuscitado ter sido condenado em nome da Lei de Moisés (Gl 3,13; Dt 21,23). Portanto, essa Lei está superada, ainda que tenha servido de “educadora” (3,24), conduzindo-nos até Cristo.


A Lei de Moisés é entendida por Paulo como todo o complexo sistema legal em que devia enquadrar-se o judeu praticamente. Esse sistema, longe de libertar, aprisionava. É esclarecedor ver que Tiago usa esse conceito complexivo da Lei no sentido oposto de Paulo. Note-se que Tiago se dirige a uma comunidade judeu-cristã, em territótio onde a Lei judaica vigorava. Por exemplo, quem observa a Lei integralmente será julgado pela “lei da liberdade”, segundo Tiago, que não deixa de destacar o amor ao próximo como a Lei Régia da Escritura (Tg 2,8-13). Paulo preconiza o mesmo mandamento da caridade como resumo e substitutivo da Lei (Gl 5,13) e coincide com Tiago quando afirma que o amor ao próximo “é a plenitude da Lei” (Rm 13,10). E ele se dirige não a judeus, mas a gentios.


Liberdade


Muitos vêem uma oposição entre Paulo e Tiago. Talvez seja mais correto ver uma acentuada diferença de Ênfase. Escrevendo para ambiente judaico, Tiago vê na lei um instrumento da liberdade (Tg 1,25; 2,12). Escrevendo para um ambiente gentio, Paulo opõe a liberdade à Lei considerada como instrumento de salvação em si mesma (Gl 4,21-31). Qual será essa liberdade que, conforme Tiago, se encarna na Lei e, conforme Paulo, deve superá-la?


A solução talvez venha de um outro teólogo da jovem Igreja: João, ao afirmar que “a verdade nos torna livres” (Jo 8,32). A verdade em João é a adesão e fidelidade ao Deus  que se revela em Jesus Cristo (Jo 3,21; 1 Jo 1,6). Essa adesão e fidelidade – não muito diferentes da “fé que atua na caridade” (Gl 5,6) – nos tornam livres: assemelham-nos ao Filho que, em comunhão com o Pai, dispõe da casa e, por direito, nela permanece, em oposição ao escravo que pode ser despedido, vendido. No seu estilo alegórico, Paulo explica que ser livre é ser filho da mulher livre, isto é, a comunidade da Nova Aliança (4,21-30).


A liberdade, nestes textos, não é a liberdade “negativa”, ou seja, a ausência de obrigações ou de responsabilidade ou mera
liberdade de. Não seria liberdade, mas libertinagem. Trata-se da liberdade para, isto é, de quem sabe que aos direitos correspondem deveres e ao direito de filho corresponde a responsabilidade sobre a casa e o patrimônio. A casa e patrimônio de Deus e dos filhos de Deus é a comunidade. Liberdade, então, equivalerá à responsabilidade, fraternidade e cidadania cristã.

Nesse sentido, a “lei da liberdade” de Tiago significa a condição dessa cidadania. Tiago apresenta a coerência com as normas que os judeu-cristãos herdaram de seus pais,
reinterpretadas em Cristo, como instrumento seguro para exercer a cidadania do Reino. Por isso, a lei da caridade é a Lei Régia (Tg 2,8). Paulo nega que a Lei, como sistema farisaico, possa garantir tal cidadania e não produz salvação ou liberdade da escravidão. O mandamento do amor é a norma geral para a “fé que atua na caridade” (Gl 5,6.13) e produz os “frutos do Espírito” em nós (5,22-23), opostos aos frutos da carne, isto é, o egoísmo humano. Na Carta aos Romanos, ele sintetiza sua visão nesta frase paradoxal: “A Lei do Espírito da vida te libertou da lei do pecado e da morte” (8,3).

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