MARIALIS CULTUS


MARIALIS CULTUS
Por Papa Paulo VI

Fonte: Vaticano


EXORTAÇÃO APOSTÓLICA

MARIALIS CULTUS

DO SANTO PADRE PAULO VI

PARA A RETA ORDENAÇÃO

E DESENVOLVIMENTO DO CULTO

À BEM-AVENTURADA VIRGEM MARIA



INTRODUÇÃO

Veneráveis Irmãos, saúde e bênção apostólica.

Desde quando fomos assumido para ocupar a Cátedra de Pedro, esforçamo-nos constantemente por dar incremento ao culto mariano, não apenas com o intuito de interpretar o sentir da Igreja e o nosso pendor pessoal, mas também porque ele, como é sabido, se insere, qual parte nobilíssima, no contexto daquele culto sagrado, em que vêm confluir a culminância da sapiência e o vértice da religião, (1) e que, por conseguinte, é dever primário do Povo de Deus.

Tendo em vista precisamente tal dever, nós procuramos secundar e encorajar sempre a grande obra de reforma litúrgica, promovida pelo Concílio Ecumênico Vaticano II; e até aconteceu, certamente não sem particular desígnio da divina Providência, que o primeiro documento conciliar que nós, juntamente com os veneráveis Padres, aprovamos e assinamos “in Spiritu Sancto”, foi a Constituição Sacrosanctum Concilium, a qual se propunha, exatamente, restaurar e fomentar a Liturgia, tornando mais profícua a participação dos fiéis nos sagrados mistérios (SC 1-3). E desde então para cá, muitos atos do nosso Pontificado tiveram como finalidade promover uma melhoria do culto a Deus, como o demonstra o fato de havermos promulgado, durante estes anos, numerosos livros do Rito Romano, restaurados em conformidade com os princípios e as normas do mesmo Concílio. Por isso, agradecemos profundamente ao Senhor, doador de todos os bens, e estamos reconhecidos também às Conferências episcopais e a cada um dos bispos, por haverem colaborado conosco, de diversas maneiras, na preparação de tais livros.

Na Virgem Maria, de fato, tudo é relativo a Cristo e dependente d’Ele: foi em vista d’Ele que Deus Pai, desde toda a eternidade, a escolheu Mãe toda santa e a plenificou com dons do Espírito a ninguém mais concedidos. A genuína piedade cristã, certamente, nunca deixou de pôr em realce essa ligação indissolúvel e a essencial referência da Virgem Maria ao divino Salvador (LG 66). Parece-nos, contudo, sobremaneira conforme com uma certa linha espiritual seguida na nossa época, dominada e absorvida pela “questão de Cristo”, (44) que nas expressões do culto à Virgem Maria se dê um relevo especial ao aspecto cristológico e se envidem esforços no sentido de elas refletirem o plano de Deus, o qual preestabeleceu “com um só e mesmo decreto a origem de Maria e da Encarnação da divina Sapiência”. (45) Isto concorrerá, sem dúvida,
para tornar mais sólida a piedade para com a Mãe de Jesus e fazer dela um instrumento eficaz para que alcancemos todos “o pleno conhecimento do Filho de Deus, o estado de Homem perfeito, a medida da plena estatura da plenitude de Cristo” (Ef 4,13). Por outro lado, contribuirá isso também para aumentar o culto devido ao mesmo Cristo, porque, segundo o sentir perene da Igreja, reforçado autorizadamente nos nossos dias (LG 66), “é referido ao Senhor aquilo com que se procura agradar a Serva; desse modo, redunda em prol do Filho aquilo mesmo que é devido à Mãe… De tal sorte, transfere-se para o Rei aquela honra que, em humilde tributo, se presta à Rainha”.(46)

26. Depois de assim aludirmos à orientação cristológica do culto a Virgem Santíssima, parece-nos útil, em seguida, fazer aqui uma chamada à atenção para a oportunidade de se dar, nesse mesmo culto, o adequado realce a outro dos dados essenciais da fé: a pessoa e a obra do Espírito Santo.

A reflexão teológica e a Liturgia têm vindo a salientar, de fato, que a intervenção santificadora do Espírito no caso da Virgem de Nazaré foi um momento culminante da sua ação na história de Salvação. Assim, por exemplo, alguns Santos Padres e escritores eclesiásticos atribuíram à obra do Espírito a santidade original de Maria, por ele “como que plasmada e tornada uma nova criatura”.(47) E, refletindo, depois, sobre os textos evangélicos: “Virá sobre ti o Espírito Santo e a potência do Altíssimo te recobrirá” (Lc 1,35), e “Maria… achou-se que tinha concebido por obra do Espírito Santo”; (…) “é obra do Espírito Santo o que nela se gerou” (Mt 1,18.20), descobriram eles em tal intervenção do Espírito uma ação que consagrou e tornou fecunda a virgindade de Maria (48) e a transformou em Palácio do Rei ou Tálamo do Verbo, (49) em Templo ou Tabernáculo do Senhor (50) e em Arca da Aliança ou da Santificação(51) títulos ricos de ressonâncias bíblicas. E, ao aprofundarem mais o mistério da Encarnação, viram na misteriosa relação Espírito Santo-Maria um aspecto esponsal, poeticamente descrito por Prudêncio, nestes termos: “a Virgem não-casada desposa o Espírito”;(52) e chamaram-lhe, ainda, Santuário do Espírito Santo (53) expressão que frisa bem o caráter sagrado da Virgem Maria, que se torna habitação permanente do mesmo Espírito
de Deus. Depois, penetrando mais na doutrina do Paráclito, perceberam que d’Ele, como de uma fonte, brotou a plenitude de graça (cf. Lc 1,28) e a abundância dos dons que a exornavam.

Ao Espírito Santo, por conseguinte, atribuíam a fé, a esperança e a caridade que animaram o coração da Virgem Santíssima, bem como a força que manteve a sua adesão à vontade de Deus e o vigor em que se apoiou a sua “compaixão” aos pés da Cruz (54) Anotaram também no cântico profético de Maria (cf. Lc 1,46-55) um particular influxo daquele mesmo Espírito que havia falado pela boca dos profetas.(55) E, ao considerarem, enfim a presença da Mãe de Jesus no Cenáculo, onde o Espírito desceu sobre a Igreja nascente (cf: At 1,12-14;2,1-4), enriqueceram com novos desenvolvimentos o tema antigo Maria-Igreja.(56) Mas, sobretudo, recorreram à intercessão da Virgem Santíssima para obter do Espírito a capacidade de gerarem Cristo na própria alma, como o atesta S. Ildefonso numa oração, que surpreende pela doutrina e pelo vigor suplicante: “Rogo-te, sim, rogo-te, Virgem Santa, que eu obtenha Jesus daquele Espírito, do qual tu mesma gerastes Jesus! Que a minha alma receba Jesus por esse mesmo Espírito, por quem a tua carne concebeu Jesus! (…) Que eu ame Jesus naquele mesmo Espírito, no qual tu o adoras como Senhor e o contemplas como Filho!”.(57).

27. Ouve-se afirmar, algumas vezes, que muitos textos de piedade moderna não refletem suficientemente toda a doutrina acerca do Espírito Santo. Cabe aos estudiosos verifïcar a justeza, ou não, dessa afïrmação e aquilatar o seu alcance; a nós compete-nos exortar a todos, principalmente aos pastores e teólogos, a procurarem aprofundar a reflexão sobre a obra do Espírito na história da Salvação e a envidarem esforços no sentido de os textos de piedade cristã darem o devido relevo a sua ação vivificante. Desse aprofundamento emergirá, em particular, a misteriosa relação entre o Espírito de Deus e a Virgem de Nazaré e a ação de ambos sobre a Igreja: e dos dados da fé meditados mais profundamente derivar-se-á uma piedade vivida de maneira mais intensa.

28. É necessário, pois, que os exercícios de piedade com que os fiéis exprimem a sua veneração para com a Mãe do Senhor, manifestem de modo mais claro o lugar que ela ocupa na Igreja: “depois de Cristo, o mais alto e o mais perto de nós”; (58) um lugar que nos edifícios cultuais do Rito bizantino tem sido expresso plasticamente de tal maneira que, na própria disposição das estruturas arquitetônicas e dos elementos iconográficos, na porta central da iconóstase, a representação da Anunciação a Maria, e na abside, e da “Theotocos” gloriosa, resulta manifesto que, a partir do “fiat” da humilde Serva do Senhor, a humanidade inicia o retorno a Deus e que na glória da Toda-santa vê a meta da sua caminhada. Assim o simbolismo com que o edifício da igreja exprime o lugar de Maria no mistério da Igreja encerra uma indicação fecunda e constitui um auspício para que, por toda a parte, as várias formas de veneração à bem-aventurada Virgem Maria se abram para perspectivas eclesiais.

A chamada à atenção para os conceitos fundamentais expostos pelo Concílio Vaticano II, sobre a natureza da Igreja, “Família de Deus”, “Povo de Deus”, “Reino de Deus”, “Corpo Místico de Cristo” (LG 6, 7-8, 9-17), permitirá, na verdade, aos fiéis, reconhecerem mais prontamente qual a missão de Maria no mistério da mesma Igreja e qual o seu eminente lugar na Comunhão dos Santos. Além disto, far-lhes-á sentir mais intensamente a fraternidade que une entre si todos os fiéis: porque filhos da Virgem Maria, “para cuja geração e educação (espiritual) ela coopera com amor de mãe” (LG 66), e porque filhos da Igreja, também, visto que “do seu parto nascemos, com o seu leite somos alimentados, e pelo seu Espírito somos vivificados”. (59) Ambas concorrem, na verdade, para gerar o Corpo Místico de Cristo; mas “se bem que uma e outra Mãe de Cristo, nenhuma delas sem a outra dá à luz todo (o Corpo)”.(60) Por fim, facultar-lhes-á perceber mais distintamente que a ação da Igreja no mundo é como que um prolongamento da solicitude de Maria: aquele amor operoso de que a Virgem Santíssima dá mostras, realmente, em Nazaré, em casa de Isabel, em Caná e sobre o Gólgota, todos estes, momentos “salvíficos” de vasto alcance eclesial, encontra a sua continuidade na preocupação materna da Igreja para que todos os homens cheguem ao conhecimento da verdade (cf.1Tm 2,4), nos seus cuidados para com os humildes, os pobres e os fracos, e na sua aplicação constante em favor da paz e da concórdia social, no seu prodigalizar-se, enfim, para que todos os homens tenham parte na Salvação que a morte de Cristo lhes mereceu.

Deste modo, o amor pela Igreja traduzir-se-á em amor para com Maria, e vice-versa, pois uma não pode subsistir sem a outra, como perspicazmente observava S. Cromácio de Aquiléia: “Reuniu-se a Igreja na parte superior (do cenáculo), com Maria que foi a Mãe de Jesus e com os irmãos d’Ele. Não se pode, portanto, falar de Igreja senão quando estiver aí Maria, Mãe do Senhor, com os irmãos d’Ele”.(61) A concluir, insistimos ainda na necessidade de que a veneração dirigida à bem-aventurada Virgem Maria torne explícito o seu intrínseco conteúdo eclesiológico: isto equivale a dizer, lançar mão de uma força capaz de renovar, salutarmente, formas e textos.

B. Algumas orientações, de ordem bíblica, litúrgica, ecumênica e antropológica, para o culto à Virgem Maria29. As indicações dadas até aqui, que fluem da consideração das relações da Virgem Maria com Deus, Pai, Filho e Espírito Santo, e com a Igreja, queremos acrescentar agora, atendo-nos sempre às linhas do ensino conciliar (LG 66-69), algumas orientações, de ordem bíblica, litúrgica, ecumênica e antropológica, a ter presentes no rever ou criar exercícios e práticas de piedade, para tornar mais vivo e mais sentido o vínculo que nos une à Mãe de Cristo e Mãe nossa, na Comunhão dos Santos.


30. A necessidade de um cunho bíblico em toda e qualquer forma de culto é hoje algo sentida, como um postulado geral da piedade cristã. O progresso dos estudos bíblicos, a crescente difusão das Sagradas Escrituras e, sobretudo, o exemplo da tradição e a íntima moção do Espírito, orientam os cristãos do nosso tempo para servir-se cada dia mais da Bíblia, qual livro fundamental de oração e para tirar dela genuína inspiração e modelos insuperáveis. O culto à bem-aventurada Virgem Maria não pode ser eximido a esta orientação geral da piedade cristã (DV 25); antes pelo contrário, deve ele inspirar-se particularmente em tal orientação, para adquirir novo vigor e dela tirar seguro proveito.

A Bíblia, ao apresentar de modo admirável o desígnio de Deus relativamente à salvação dos homens, acha-se toda ela impregnada do mistério do Salvador e encerra também, sem dúvida, desde o Gênesis até ao Apocalipse, referências àquela que foi mãe e cooperadora do mesmo Salvador. Não desejaríamos, no entanto, que o cunho bíblico se limitasse a um uso diligente de textos e símbolos sapientemente tirados das mesmas Sagradas Escrituras; essa característica comporta algo mais: requer, efetivamente, que as fórmulas de oração e os textos destinados ao canto assumam os termos e a inspiração da Bíblia; e exige, sobretudo, que o culto à Virgem Santíssima seja permeado pelos grandes temas da mensagem cristã, a fim de que os féis, ao mesmo tempo que veneram aquela que é a Sede da Sabedoria, sejam também eles iluminados pela luz da Palavra divina e levados a agir segundo os ditames do Verbo encarnado.

31. Acerca da veneração que a Igreja presta à Mãe de Deus, na celebração da sagrada Liturgia, já falamos anteriormente. Mas agora, ao começar a discorrer sobre outras formas de culto e sobre os critérios em que elas hão de inspirar-se, não podemos deixar de recordar a norma da Constituição Sacrosanctum Concilium, a qual, ao mesmo tempo que recomenda vivamente os exercícios de piedade do povo cristão, acrescenta: “…Importa, porém, ordenar essas práticas de piedade tendo em conta os tempos litúrgicos, de maneira que se harmonizem com a sagrada Liturgia, de certo modo derivem dela, e a ela, que por sua natureza lhes é muito superior, conduzam o povo cristão” (SC 13).

Norma sapiente, esta, e simultaneamente clara; a sua aplicação prática, no entanto, não se apresenta fácil, sobretudo no campo do culto à Virgem Santíssima, tão variado nas suas expressões formais. Tal aplicação exige, na realidade, da parte dos responsáveis pelas Comunidades locais, esforço, tato pastoral e constância; e da parte dos fiéis, prontidão para aceitar orientações e propostas que, promanando embora da genuína natureza do culto cristão, muitas vezes comportam a mudança de usos inveterados, nos quais aquela natureza, de algum modo, se havia obscurecido.

Aqui neste ponto, quereríamos fazer alusão a duas atitudes que poderiam, eventualmente, tornar vã, na prática pastoral, a sobredita norma do Concílio Vaticano II: em primeiro lugar, a atitude de alguns a quem está confiada a cura de almas, que, aprioristicamente, desprezam os exercícios de piedade, se bem que recomendados pelo Magistério quando feitos na forma devida; e por isso, transcuram-nos e criam um vazio que não providenciam a preencher de nenhuma maneira. Ora, estes que assim procedem esquecem que o Concílio diz que se harmonizem os exercícios de piedade com a Liturgia e não que se suprimam simplesmente. Em segundo lugar, lembramos a atitude daqueles que, à margem de um são critério litúrgico e pastoral, misturam ao mesmo tempo exercícios piedosos e atos litúrgicos, em celebrações híbridas. Acontece, algumas vezes, que na própria celebração do Sacrifício Eucarístico são inseridos elementos que fazem parte de novenas ou de outras práticas piedosas, com o perigo de o Memorial do Senhor não constituir o momento culminante do encontro da comunidade cristã, mas ser como que a ocasião para algumas práticas devocionais. Aqueles que assim procedem quereríamos recordar que a norma conciliar prescreve que se harmonizem os piedosos exercícios com a Liturgia e não que se confundam com ela. Uma ação pastoral esclarecida, pois, deve, por um lado, saber distinguir e acentuar a natureza própria dos atos litúrgicos; e por outro lado, saber valorizar os piedosos exercícios, para os adaptar às necessidades de cada uma das comunidades eclesiais e torná-los preciosos auxiliares da mesma Liturgia.

32. Em virtude do seu caráter eclesial, no culto à Virgem Maria refletem-se as preocupações da própria Igreja, entre as quais, nos nossos dias, se salienta o anseio pela recomposição da unidade dos cristãos. A piedade para com a Mãe do Senhor torna-se, deste modo, sensível aos anelos e aos escopos do Movimento ecumênico, quer dizer, adquire também ela um caráter ecumênico. E isso, por vários motivos.

Antes de mais nada, porque os fiéis católicos se unem aos irmãos das Igrejas ortodoxas, nas quais a devoção à bem-aventurada Virgem Maria se reveste de formas de elevado lirismo e de doutrina profunda, ao venerar, com particular amor, a “Theotocos”, e ao aclamá-la como “Esperança dos cristãos”; (62)se unem aos Anglicanos, cujos teólogos clássicos já colocavam em evidência a sólida base escriturística do culto a Mãe de Nosso Senhor, e cujos teólogos contemporâneos frisam ainda mais a importância do lugar que Maria ocupa na vida cristã; se unem, enfim, aos irmãos das Igrejas da reforma, entre os quais floresce vigorosamente o amor pelas Sagradas Escrituras, que os leva a glorificarem a Deus com as próprias palavras da Virgem (cf. Lc 1,46-55).

Depois, porque a piedade para com a Mãe de Cristo e dos cristãos é, para os católicos, ocasião natural e freqüente de imploração, para que ela interceda junto do Filho pela união de todos os batizados, num só Povo de Deus (LG 69). E ainda, porque é desejo da Igreja católica que nesse culto, sem que lhe seja atenuado o caráter singular (LG 66; SC 103), sejam evitados, com todo o cuidado, quaisquer exageros, que possam induzir em erro os outros irmãos cristãos, acerca da verdadeira doutrina da Igreja católica (LG 67); e sejam banidas quaisquer manifestações cultuais contrárias à reta praxe católica. Por fim, sendo conatural ao genuíno culto da bem-aventurada Virgem Maria que, “ao honrar a Mãe (…) melhor se conheça, ame e glorifique o Filho” (LG 56), ele torna-se caminho para Cristo, fonte e centro da comunhão eclesiástica, na qual todos aqueles que confessam abertamente que Ele é Deus e Senhor, Salvador e único
Mediador (cf. 1Tm 2,5), são chamados a serem uma só coisa entre si, com Ele e com o Pai, na unidade do Espírito Santo (63).

33. Estamos conscientes de que existem não leves discordâncias entre o pensamento de muitos irmãos de outras Igrejas e comunidades eclesiais, e a doutrina católiea “acerca (…) da função de Maria na obra da Salvação” (UR 20); e, por conseqüência, acerca do culto a prestar-lhe. Todavia, porque a mesma potência do Altíssimo que cobriu com a sua sombra a Virgem de Nazaré (cf. Lc 1,35) age também no hodierno Movimento ecumênico e o fecunda, desejamos exprimir a nossa confiança em que a veneração da humilde Serva do Senhor, na qual o Onipotente fez grandes coisas (cf. Lc 1,49), se há de tornar, se bem que lentamente, não já um obstáculo, mas sim um trâmite e ponto de encontro para a união de todos os crentes em Cristo.

Sentimos alegria, de fato, ao verificar que uma melhor compreensão do lugar de Maria no mistério de Cristo e da Igreja, também da parte dos irmãos separados, torna mais desimpedido o caminhar para o encontro. E como em Caná a Virgem Santíssima, com a sua intervenção, obteve que Jesus realizasse o primeiro dos seus milagres (cf. Jo 2,1-12), assim também na nossa época ela poderá, com a sua intercessão, propiciar o advento da hora em que os discípulos de Cristo reencontrem a plena comunhão na fé. E esta nossa esperança é corroborada pela observação que já fazia o nosso predecessor Leão XIII: a causa da união dos cristãos é algo que “faz parte especificamente da sua (de Maria) função da maternidade espiritual. Na verdade, aqueles que são de Cristo, Maria não os gerou nem poderia gerar, senão numa única fé e num único amor: porventura “estará Cristo dividido” (lCor 1,13)? E assim, nós devemos, todos conjuntamente, viver da vida de Cristo, afim de, num só e mesmo corpo, “produzirmos frutos para Deus” (Rom 7,4)”.(64)

34. No culto à Santíssima Virgem devem ser tidas em atenta consideração também as aquisições seguras e comprovadas das ciências humanas; isso concorrerá, efetivamente, para que seja eliminada uma das causas de perturbação que se nota nesse mesmo campo do culto à Mãe do Senhor; quer dizer, aquele desconcerto entre certos dados deste culto e as hodiernas concepções antropológicas e a realidade psicossociológica, profundamente mudada, em que os homens do nosso tempo vivem e operam.

Observa-se, na realidade, que é difícil enquadrar a imagem da Virgem Maria conforme resulta de certa literatara devocional, nas condições de vida da sociedade contemporânea, e em particular nas da mulher. E isso, quer a consideremos no ambiente doméstico, onde tanto as leis como a evolução dos costumes tendem justamente para lhe reconhecer a igualdade e a co-responsabilidade com o homem, na direção da vida familiar; quer a consideremos no campo político, onde ela conquistou, em muitos Países, um poder de intervenção na coisa pública, a par do homem; quer a consideremos, ainda, no campo social, onde ela desenvolve a sua atividade, nos mais variados setores operativos, deixando cada dia mais o restrito ambiente do lar; quer a consideremos, enfim, no campo cultural, onde lhe são proporcionadas possibilidades novas de pesquisa científica e de afirmação intelectual.

Ora, daqui segue-se logicamente, para alguns, uma certa desafeição para com o culto à Virgem Santíssima e uma certa dificuldade em tomar Maria de Nazaré como modelo, porque os horizontes da sua vida, afirma-se, resultam restritos, em confronto com as vastas zonas de atividade em que a pessoa humana contemporânea é chamada a atuar. A este propósito, ao mesmo tempo que exortamos os teólogos, os responsáveis pelas Comunidades cristãs e os mesmos féis a dedicarem a devida atenção a tais problemas, pareceu-nos útil dar uma contribuição, nós próprio também, para a sua solução, apresentando em seguida algumas observações.

35. Antes de mais nada, a Virgem Maria foi sempre proposta pela Igreja à imitação dos fiéis, não exatamente pelo tipo de vida que ela levou ou, menos ainda, por causa do ambiente sócio-cultural em que se desenrolou a sua existência, hoje superado quase por toda a parte; mas sim, porque, nas condições concretas da sua vida, ela aderiu total e responsavelmente à vontade de Deus (cf. Lc 1,38); porque soube acolher a sua palavra e pô-la em prática; porque a sua ação foi animada pela caridade e pelo espírito de serviço; e porque, em suma, ela foi a primeira e a mais perfeita discípula de Cristo, o que, naturalmente, tem um valor exemplar universal e permanente.

36. Em segundo lugar, quereríamos anotar que as dificuldades acima aludidas estão em íntima conexão com alguns traços da imagem popular e literária de Maria, e não com a sua imagem evangélica, nem com os dados doutrinais, que foram sendo precisados ao longo de lento e sério trabalho de explicitação da Palavra revelada. Deve considerar-se coisa normal, aliás, que as gerações cristãs que se sucederam, em quadros sócio-culturais diversos, ao contemplarem a figura e a missão de Maria, qual nova Mulher e perfeita cristã, que reuniu em si as situações mais características da vida feminina, porque Virgem, Esposa e Mãe, tenham visto na Mãe de Jesus o tipo eminente da condição feminina e o exemplar limpidíssimo da vida evangélica, e tenham expresso estes seus sentimentos segundo as categorias e as representações próprias da sua época.

A Igreja, quando considera a longa história da piedade mariana, alegra-se, ao verificar a continuidade do fato cultual; mas não se liga aos esquemas representativos das várias épocas culturais, nem às particulares concepções antropológicas que lhes estão subjacentes; ademais, compreende bem que algumas expressões de tal culto, perfeitamente válidas em si mesmas, são menos adaptadas aos homens que pertencem a épocas e civilizações diversas.

37. Desejamos, por fim, acentuar que a nossa época, não diversamente das precedentes, é chamada a aquilatar o próprio conhecimento da realidade com a palavra de Deus e, para ater-nos ao assunto de que estamos a tratar, a confrontar as suas concepções antropológicas e os problemas que daí derivam com a figura da Virgem Maria, conforme ela está proposta no Evangelho. Desse modo, a leitura das divinas Escrituras, feita sob o influxo do Espírito Santo e tendo presentes as aquisições das ciências humanas e as várias situações do mundo contemporâneo, levará a descobrir que Maria pode bem ser tomada como modelo naquilo por que anelam os homens do nosso tempo.

Assim, para dar alguns exemplos: a mulher contemporânea, desejosa de participar com poder de decisão nas opções da comunidade, contemplará com íntima alegria a Virgem Santíssima, que, assumida para o diálogo com Deus, dá o seu consentimento ativo e responsável (LG 56), não para a solução dum problema contingente, mas sim da “obra dos séculos” como foi designada com justeza a Encarnação do Verbo;(65) dar-se-á conta de que a escolha do estado virginal por parte de Maria, que no desígnio de Deus a dispunha para o mistério da Encarnação, não foi um ato de fechar-se a qualquer dos valores do estado matrimonial, mas constituiu uma opção corajosa, feita para se consagrar totalmente ao amor de Deus; verificará, com grata surpresa, que Maria de Nazaré, apesar de absolutamente abandonada à vontade do Senhor, longe de ser uma mulher passivamente submissa ou de uma religiosidade alienante, foi, sim, uma mulher que não duvidou em armar que Deus é vingador dos humildes e dos oprimidos e derruba dos seus tronos os poderosos do mundo (cf. Lc 1,5153); e reconhecerá em Maria, que é “a primeira entre os humildes e os pobres do Senhor” (LG 55), uma mulher forte, que conheceu de perto a pobreza e o sofrimento, a fuga e o exílio (cf. Mt 2,13-23), situações, estas, que não podem escapar à atenção de quem quiser secundar, com Espírito evangélico, as energias libertadoras do homem e da sociedade; e não lhe aparecerá Maria, ainda, como uma mãe ciosamente voltada só para o próprio Filho divino, mas sim como aquela Mulher que, com a sua ação, favoreceu a fé da comunidade apostólica, em Cristo (cf. Jo 2,1-12), e cuja função materna se dilatou, vindo a assumir no Calvário dimensões universais.(66)

São exemplos, como dizíamos. Deles transparece claramente, no entanto, que a figura da Virgem Santíssima não desilude algumas aspirações profundas dos homens do nosso tempo, e até lhes oferece o modelo acabado do discípulo do Senhor: obreiro da cidade terrena e temporal, e, simultaneamente, peregrino solerte também, em direção à cidade celeste e eterna; promotor da justiça que liberta o oprimido e da caridade que socorre o necessitado, mas, sobretudo, testemunha operosa do amor, que educa Cristo nos corações.

38. Depois de haver apresentado, assim, estas diretrizes, em ordem a favorecer o desenvolvimento harmonioso do culto à Mãe do Senhor, julgamos oportuno chamar a atenção para algumas atitudes cultuais errôneas.

O Concílio Vaticano II já denunciou, autorizadamente, tanto o exagero de conteúdos ou de formas, que vai até ao ponto de falsear a doutrina, como a mesquinhez de mente que chega a obscurecer a figura e a missâo de Maria; de igual modo alguns desvios cultuais: a vã credulidade, que a uma aplicação séria substitui o dar-se facilmente a práticas apenas exteriores; o estéril e passageiro impulso do sentimento, tão alheio ao estilo evangélico, que exige esforço perseverante e efetivo (LG 67). Nós reiteramos a deploração destas coisas: não são formas em harmonia com a fé católica e, por conseguinte, não devem subsistir no culto católico.

A defesa vigilante contra estes erros e desvios fará com que se torne mais vigoroso e genuíno o culto a santíssima Virgem: sólido nos seus fundamentos, pelo que, nele, o estudo das fontes reveladas e a atenção aos documentos do Magistério hão de prevalecer sobre a descomedida busca da novidade e de fatos extraordinários; objetivo no seu enquadramento histórico, pelo que deverá ser banido dele tudo aquilo que é manifestamente lendário ou falso; adequado ao conteúdo doutrinal, de onde a necessidade de evitar apresentações unilaterais da figura de Maria, que, por insistirem desmesuradamente num determinado elemento, comprometem o conjunto da imagem evangélica; e, enfim, límpido nas suas motivações, pelo que será mantido longe do santuário, com diligente cuidado, todo e qualquer interesse mesquinho.

39. Por fim, se porventura disso houvesse necessidade, quereríamos reiterar a insistência nisto: a finalidade última do culto à bem-aventurada Virgem Maria é glorificar a Deus e levar os cristãos a aplicarem-se numa vida absolutamente conforme a sua vontade. Os filhos da Igreja, na verdade, quando, juntando as suas vozes a da mulher anônima do Evangelho, enaltecem a Mãe de Jesus ao exclamarem, dirigindo-se ao mesmo Jesus, “Felizes as entranhas que te trouxeram e os seios que te amamentaram!” (Lc 11,27), serão induzidos a considerarem a grave resposta do divino Mestre: “Felizes antes os que ouvem a palavra de Deus e a observam!” (Lc 11,28). E esta resposta, se por um lado redunda num patente louvor a Santíssima Virgem, como a interpretaram alguns Santos Padres (67) e o Concílio Vaticano II o confirmou (LG 58), por outro lado, ressoa para nós também como uma advertência a vivermos os mandamentos de Deus, e é como que o eco de outras admoestações do divino Salvador: “Nem todo o que me diz: `Senhor!
Senhor!’ entrará no reino dos céus, mas o que faz a vontade de meu Pai que está nos céus” (Mt 7,21); e, “Vós sois meus amigos, se fizerdes o que eu vos ordenei” (Jo 15,14).

III PARTE

INDICAÇÕES ACERCA DOS PIOS EXERCÍCIOS DO “ANGELUS DOMINI” (”AVE-MARIAS”) E DO SANTO ROSÁRIO

40. Temos vindo indicando alguns princípios, de per si aptos para darem novo vigor ao culto da Mãe do Senhor; agora é tarefa das Conferências episcopais e dos responsáveis pelas Comunidades locais e pelas várias famílias religiosas proceder sapientemente a restauração das práticas e exercícios de veneração para com a bem-aventurada Virgem Maria. Assim, procurarão secundar o impulso criador de todos aqueles que, levados por uma genuína inspiração religiosa e dando mostras de sensibilidade pastoral, desejem lançar novas formas de expressar tal veneração. Parece-nos oportuno, todavia, se bem que por motivos diversos, tratar aqui de dois exercícios de piedade muito difundidos no Ocidente, e dos quais esta Sé Apostólica se tem ocupado, em várias ocasiões: o “Angelus Domini” (ou “Ave Macias”, ou “Trindades”) e o Rosário (ou Terço, ou Coroa) de Nossa Senhora.

O “Angelus Domini” (”Ave-Marias”)

41. As nossas palavras acerca do “Angelus Domini” (”Ave-Marias”) intentam ser uma simples mas férvida exortação a que se mantenha a costumada recitação, onde e quando isso for possível. Tal exercício de piedade não tem necessidade de ser restaurado: a estrutura simples, o caráter bíblico, a origem histórica que a liga à invocação da incolumidade na paz, o ritmo quase litúrgico que santifica momentos diversos do dia, a abertura para o Mistério Pascal, em virtude da qual, ao mesmo tempo que comemoramos a Encarnação do Filho de Deus, pedimos para ser conduzidos, “pela sua paixão e morte na Cruz, a glória da ressurreição”, (68) fazem com que ele, à distância de séculos, conserve inalterado o seu valor e intacto o seu frescor.

É certo que alguns usos, tradicionalmente coligados com a recitação do “Angeles Domini”, desapareceram ou dificilmente podem manter-se na vida moderna; mas trata-se de elementos marginais. Resta, pois, imutado o valor da contemplação do mistério da Encarnação do Verbo, da saudação à Virgem Santíssima e do recurso à sua misericordiosa intercessão; e, não obstante terem mudado as condições dos tempos, permanecem invariados também, para a maior parte dos homens, aqueles momentos característicos do dia, amanhã, meio-dia e tarde, que assinalam os tempos da sua atividade e constituem um convite a uma pausa de oração.

O santo Rosário

42. E queremos em seguida, veneráveis Irmãos, deter-nos um pouco mais longamente sobre a renovação daquele outro exercício de piedade, que já foi chamado “o compêndio de todo o Evangelho”: (69) o Rosário, ou então o Terço (ou Coroa), de Nossa Senhora.

Os nossos predecessores dedicaram a esta prática vigilante atenção e diligente solicitude. Assim, mais de uma vez recomendaram a recitação do Rosário, favoreceram a sua difusão, ilustraram a sua natureza, reconheceram-lhe aptidão para desenvolver uma oração contemplativa, de louvor e simultaneamente de súplica, recordaram a sua conatural eficácia para promover a vida cristã e o empenho apostólico.

Nós próprios, desde a primeira audiência geral do nosso pontificado, a 13 de julho de 1963, temos tido ocasião de demonstrar a nossa grande estima pela piedosa prática do Rosário;(70) em momentos sucessivos não deixamos de sublinhar o seu valor, em circunstâncias multíplices, umas ordinárias e outras graves, como quando, numa hora de angústia e de insegurança, publicamos a Carta Encíclica “Christi Matri” (15 de setembro de 1966), para que fossem dirigidas orações suplicantes à bem-aventurada Virgem do Rosário, para impetrar de Deus o supremo bem da paz; (71) apelo, esse, que renovamos na nossa Exortação Apostólica “Recurrens mensis October” (7 de outubro de 1969), com a qual comemorávamos o quarto centenário da Carta Apostólica “Consueverunt Romani Pontífices” do nosso predecessor São Pio V, que nela ilustrou e, de algum modo, definiu a forma tradicional do Rosário. (72)

43. E esse nosso interesse assíduo pelo que se refere à tão querida devoção do Rosário da bem-aventurada Virgem Maria levou-nos a acompanhar sempre, com ânimo atento, os numerosos convênios dedicados nestes últimos anos à pastoral do mesmo Rosário no mundo contemporâneo; convênios promovidos por associações e por pessoas singulares, às quais está profundamente a peito a mesma devoção do Rosário, e nos quais participaram bispos, presbíteros, religiosos e leigos de comprovada experiência e de manifesto sentido eclesial. Entre eles, é justo recordar os Filhos de São Domingos, por tradição guardiães e propagadores dessa tão salutar devoção. Aos trabalhos de tais convênios têm vindo a juntar-se as investigações dos historiadores, conduzidas, não com sentido de definir, quase com intuitos arqueológicos, qual a forma primitiva do Rosário, mas, sim, para apreender-lhe as intuições originais, a energia primigênia e a estrutura essencial. De tais convênios e investigações apareceram, mais nitidamente, quais as características primárias do Rosário e quais os seus elementos essenciais e a mútua relação existente entre eles.

44. Assim, por exemplo, apareceu numa luz mais viva a índole evangélica do mesmo Rosário, na medida em que se salientou que ele vai haurir ao Evangelho o enunciado dos mistérios e as fórmulas principais; no Evangelho se inspira, ainda, a sugestão para aquela atitude com que o fiel o deve recitar, a partir da jubilosa saudação do Anjo e do correspondente assentimento religioso da Virgem Maria; e do Evangelho, enfim, lembra, no suceder-se das Ave-Marias, um mistério fundamental, a Encarnação do Verbo, contemplado no momento decisivo da Anunciação feita a Maria. O Rosário, por conseguinte, é uma oração evangélica, como hoje em dia, talvez mais do que no passado, gostam de a definir os pastores e os estudiosos.

45. Foi percebido com maior clareza, além disso, que o ordenado e gradual desenrolar-se do Rosário reflete aquele mesmo modo com que o Verbo de Deus, ao inserir-se por misericordiosa decisão, nas vicissitudes humanas, operou a Redenção. O Rosário, de fato, considera numa sucessão harmoniosa os principais eventos “salvíficos” da mesma Redenção, que se realizaram em Cristo: desde a concepção virginal, passando pelos mistérios da infância, até aos momentos culminantes da Páscoa, a bendita Paixão e gloriosa Ressurreição, e aos efeitos da mesma sobre a Igreja nascente, no dia de Pentecostes, e sobre a Virgem Maria, na altura em que, tendo terminado o exílio terreno, foi assumida em corpo e alma à pátria celestial.

Foi observado, ademais, que a tríplice divisão dos mistérios do Rosário, não só coincide de maneira perfeita com a ordem cronológica dos fatos, mas sobretudo reflete também o esquema do primitivo anúncio da fé e evoca o mistério de Cristo, daquele mesmo modo como ele é visto por São Paulo, no célebre “hino” da Epístola aos Filipenses: despojamento, morte e exaltação (cf. 2,6-11).

46. Oração evangélica, centrada sobre o mistério da Encarnação redentora, o Rosário é, por isso mesmo, uma prece de orientação profundamente cristológica. Na verdade, o seu elemento mais característico, a repetição litânica do “Alegra-te, Maria”, torna-se também ele, louvor incessante, a Cristo, objetivo último do anúncio do Anjo e da saudação da mãe do Batista: “bendito o fruto do teu ventre” (Lc 1,42). Diremos mais ainda: a repetição da Ave-Maria constitui a urdidura sobre a qual se desenrola a contemplação dos mistérios; aquele Jesus que cada Ave-Maria relembra é o mesmo que a sucessão dos mistérios propõe, uma e outra vez, como Filho de Deus e da Virgem Santíssima; nascido numa gruta de Belém; apresentado pela mesma Mãe no Templo; um rapazinho ainda, a demonstrar-se cheio de zelo pelas coisas de seu Pai; depois, Redentor, agonizante no horto, flagelado e coroado de espinhos; a carregar a cruz e a morrer sobre o Calvário; por fim, ressuscitado da morte e elevado à glória do Pai, para efundir o dom do Espírito.

É coisa conhecida que, exatamente para favorecer a contemplação e para que a mente estivesse sempre em sintonia com as palavras, se costumava outrora, e tal costume conservou-se em diversas regiões, ajuntar ao nome de Jesus, em cada Ave-Maria, uma cláusula, que chamasse a atenção para o mistério enunciado.

47. Depois, fizeram tais convênios e investigações com que se sentisse, com maior urgência, a necessidade de recordar, ao lado do elemento laudativo e deprecatório, a importância de outro elemento essencial do Rosário: a contemplação. Sem esta, o mesmo Rosário é um corpo sem alma e a sua recitação corre o perigo de tornar-se uma repetição mecânica de fórmulas e de vir a achar-se em contradição com a advertência de Jesus: “Nas vossas orações, não useis de vãs repetições, como os gentios, porque imaginam que é pelo palavreado excessivo que serão ouvidos” (Mt 6,7). Por sua natureza, a recitação do Rosário requer um ritmo tranqüilo e uma certa demora a pensar, que favoreçam, naquele que ora, a meditação dos mistérios da vida do Senhor, vistos através do coração daquela que mais de perto esteve em contacto com o mesmo Senhor, e que abram o acesso às suas insondáveis riquezas.

48. Mediante a reflexão contemporânea, por fim, puderam ser compreendidas com uma maior precisão as relações existentes entre a Liturgia e o Rosário. Por um lado, foi salientado que o Rosário é como que um rebento que germinou sobre o tronco secular da Liturgia cristã, qual “Saltério da Santíssima Virgem”, com que os humildes se pudessem associar ao cântico de louvor e à intercessão universal da Igreja; por outro lado, observou-se ainda, isso aconteceu no declinar da Idade Média, numa época em que o espírito litúrgico se encontrava em decadência e se começava a verificar um certo afastamento dos fiéis da Liturgia, para se ir mais para uma devoção sensível para com a Humanidade de Cristo e para com a bem-aventurada Virgem Maria.

Se em tempos não recuados pôde surgir no espírito de alguns o desejo de ver o Rosário incluído no número das expressões litúrgicas, e, pelo contrário, da parte de outros, levados pela preocupação de evitar erros pastorais do passado, uma injustificada desatenção em relação ao mesmo Rosário, hoje o problema é facilmente solucionável, à luz dos princípios da Constituição Sacrosanctum Concilium: as celebrações litúrgicas e o pio exercício do Rosário não se devem contrapor nem equiparar.(73)

Cada expressão de oração, na verdade, conseguirá ser tanto mais fecunda, quanto mais conservar a sua verdadeira natureza e a fisionomia que lhe é própria. Reafirmando, portanto, o valor proeminente dos atos litúrgicos, não será difícil reconhecer que o Rosário é um exercício de piedade que se harmoniza facilmente com a sagrada Liturgia. Como a Liturgia, efetivamente, também o mesmo Rosário tem uma índole comunitária, se nutre da Sagrada Escritura e gravita em torno do mistério de Cristo. Depois, muito embora em planos essencialmente diversos, anamnese na Liturgia e memória contemplativa no Rosário têm por objeto os mesmos eventos “salvíficos” realizados por Cristo. A primeira torna presentes, sob o véu dos sinais, e operantes, de modo misterioso, os máximos mistérios da nossa Redenção; a segunda, por sua vez com o piedoso afeto da contemplação, reevoca na mente daquele que ora esses mesmos mistérios e estimula nele a vontade para haurir aí normas de vida.

Estabelecida esta diferença substancial, não há quem não veja ser o Rosário um pio exercício que à Liturgia foi buscar a sua motivação e que, se for praticado de acordo com a sua inspiração originária, a ela conduz, naturalmente, sem no entanto transpor o seu limiar. A meditação dos mistérios do Rosário, de fato, ao tornar familiares à mente e ao coração dos fiéis os mistérios de Cristo, pode constituir uma ótima preparação, e vir a ser, depois, um eco prolongado da celebração dos mesmos mistérios nos atos litúrgicos. É erro, todavia infelizmente, ainda a subsistir nalguns lugares, o recitar o Rosário durante a ação litúrgica.

49. O Rosário (Terço-Coroa) da bem-aventurada Virgem Maria, segundo a tradição que foi acolhida e autorizadamente proposta pelo nosso predecessor São Pio V, consta de vários elementos, dispostos de modo orgânico:

a) a contemplação, em comunhão com Maria, de uma série de mistérios da Salvação, sapientemente distribuídos em três ciclos que exprimem: o gozo dos tempos messiânicos; a dor “salvífica” de Cristo; e a glória do divino Ressuscitado que inunda a Igreja. Uma tal contemplação, pela sua natureza, conduz à reflexão prática e suscita estimulantes normas de vida.

b) a Oração Dominical, ou Pai-Nosso, que, pelo seu imenso valor, está na base da oração cristã e a nobilita nas suas diversas expressões.

c) a sucessão litânica da Ave-Maria, que resulta composta da saudação do Anjo à Virgem Santíssima (cf. Lc 1,28) e do bendizente obséquio de Isabel (cf. Lc 1,42), ao que se segue a súplica eclesial Santa Maria. A série continuada das Ave-Marias é uma característica peculiar do Rosário, e o seu número, na forma típica e plenária de cento e cinqüenta, apresenta uma tal ou qual analogia com o Saltério e é um dado que remonta à própria origem do piedoso exercício. Mas esse mesmo número, de acordo com um costume comprovado, dividido em dezenas coligadas a cada um dos mistérios, distribui-se nos três ciclos acima mencionados, dando lugar ao conhecido Terço, de cinqüenta Ave-Marias, o qual entrou em uso qual medida normal do mesmo exercício e, como tal, foi adotado pela piedade popular e sancionado pela Autoridade pontifícia, que o enriqueceu com numerosas indulgências.

d) a doxologia Glória ao Pai, que, em conformidade com uma orientação generalizada da piedade cristã, encerra a oração com a glorificação de Deus, uno e trino, do qual, pelo qual e para o qual são todas as coisas (cf. Rom 11,36).

50. Estes são, pois, os elementos do santo Rosário. Cada um deles tem a sua índole própria, que, acertadamente compreendida e apreciada, deve refletir-se na recitação, a fim de que o mesmo Rosário exprima toda a sua riqueza e variedade. Essa recitação, por conseguinte, tornar-se-á: grave e implorante, na Oração Dominical; lírica e laudativa, no transcorrer calmo das Ave-Marias; contemplativa, na reflexão atenta sobre os mistérios; e adorante na doxologia. E isto, note-se, em todas aquelas maneiras como costuma ser recitado o Rosário: quer privadamente, recolhendo-se aquele que ora na intimidade com o Senhor; quer comunitariamente, ou em família, ou por vários fiéis reunidos em grupo, para criar condições para uma particular presença do Senhor (cf. Mt 18,20), ou, ainda, publicamente, em assembléias para as quais é convocada qualquer comunidade eclesial.

51. Em tempos recentes, vieram a ser criados alguns pios exercícios, que vão buscar inspiração ao santo Rosário. Entre estes, queremos fazer menção e recomendar os que inserem no esquema habitual das celebrações da Palavra de Deus alguns elementos típicos do mesmo Rosário, como por exemplo, a meditação dos mistérios e a repetição litânica da saudação angélica. Tais elementos adquirem assim um maior relevo, enquadrados como são na leitura de textos bíblicos, ilustrados pela homilia, rodeados de pausas de silêncio e sublinhados com o canto. É-nos grato saber que semelhantes exercícios têm contribuído para fazer apreender mais completamente as riquezas espirituais do mesmo Rosário, e para que seja tida em maior apreço a sua prática no seio de associações e de movimentos de jovens.

52. Queremos agora, em continuidade de pensamento com os nossos predecessores, recomendar vivamente a recitação do santo Rosário em família. O Concílio Vaticano II pôs bem em evidência que a mesma família, qual célula primeira e vital da sociedade, “deve mostrar-se, pela mútua piedade dos membros e pela oração dirigida a Deus em comum, como um santuário familiar da Igreja” (AA 11). A família cristã, por conseguinte, apresentar-se-á assim como “Igreja doméstica” (LG 11), na medida em que os seus membros, cada qual no seu lugar e dentro das suas atribuições próprias, se dão as mãos no promover a justiça, no praticar as obras de misericórdia, no dedicar-se ao serviço dos irmãos, tomando parte no apostolado da comunidade local mais ampla e inserindo-se no seu culto litúrgico (AA 11); e, ainda, se elevarem a Deus orações suplicantes, em comum; se viesse a falhar este elemento no seio da família, então faltar-lhe-ia o próprio caráter de família cristã. Por isso, à recuperação da noção teológica da família, como Igreja doméstica, deve, coerentemente, seguir-se um esforço por instaurar na vida da mesma família a oração em comum.

53. De acordo com as diretrizes conciliares, a Institutio generalis de Liturgia Horarum inclui, justamente, o agregado familiar no número dos grupos aos quais se adapta a celebração em comum do Ofício divino: “É conveniente, lê-se aí, que, por fim, também a família, qual santuário doméstico da Igreja, não se limite apenas a elevar a Deus preces em comum, mas recite, conforme as circunstâncias lho facultarem, algumas partes da Liturgia das Horas, para se inserir mais intimamente na mesma Igreja” (n. 27). Por conseguinte, nada se deve deixar de tentar para que esta indicação clara possa vir a ter crescente e feliz aplicação no seio das famílias cristãs.

54. Mas, depois da celebração da Liturgia das Horas ponto culminante a que pode chegar a oração doméstica, não há dúvida de que o Rosário da bem-aventurada Virgem Maria deve ser considerado uma das mais excelentes e eficazes orações em comum, que a família cristã é convidada a recitar. Dá-nos gosto pensar e auspiciamos vivamente que, quando o encontro familiar se transforma em tempo de oração, seja o Rosário a sua expressão freqüente e preferida. Estamos bem conhecedor de que as mudadas condições da vida dos homens, nos nossos dias, não são favoráveis à possibilidade de momentos de reunião familiar; e de que, mesmo quando isso acontece, não poucas circunstâncias se conjugam para tornar difícil transformar o encontro da família em ocasião de oração. É uma coisa difícil, sem dúvida. No entanto, é também característico do agir cristão não se render aos condicionamentos do ambiente, mas superá-los; não sucumbir, mas sim elevar-se. Portanto, aquelas famílias que queiram viver em plenitude a vocação e a espiritualidade própria da família cristã, devem envidar todos os esforços para eliminar tudo o
que seja obstáculo para os encontros familiares e para a oração em comum.

55. Ao concluir estas observações, prova da solicitude e da estima desta Sé Apostólica pelo santo Rosário (Terço-Coroa), queremos entretanto recomendar que, na difusão de tão salutar devoção, as suas reais proporções não sejam nunca alteradas, e que jamais ela seja apresentada com inoportuno exclusivismo: o Rosário é uma oração excelente, em relação à qual, contudo, os fiéis se devem sentir serenamente livres, e solicitados a recitá-la com compostura e tranqüilidade, atraídos pela sua beleza intrínseca.

CONCLUSÃO

VALOR TEOLOGICO E PASTORAL DO CULTO DA SANTÍSSIMA VIRGEM

66. A terminar esta nossa Exortação Apostólica, veneráveis Irmãos, desejamos frisar ainda, em breve síntese, o valor teológico do culto à Santíssima Virgem, e relembrar, resumidamente, a sua eficácia pastoral para a renovação dos costumes cristãos.

A piedade da Igreja para com a bem-aventurada Virgem Maria é elemento intrínseco do culto cristão. Essa veneração que a Igreja tem vindo a prestar à Mãe do Senhor, em todos os lugares e em todos os tempos, desde a saudação com que Isabel a bendiz (cf. Lc 1,42-45) até as expressões de louvor e de súplica da nossa época, constitui um excelente testemunho da sua norma de oração e um convite a reavivar nas consciências a sua norma de fé. E, em contrapartida, a norma de fé da Igreja exige também que, por toda a parte, floresça com pujança a sua norma de oração pelo que se refere à Mãe de Cristo.

Um tal culto à Virgem Santíssima tem raízes profundas na Palavra revelada e, conjuntamente, sólidos fundamentos dogmáticos: a singular dignidade de Maria, “Mãe do Filho de Deus e, por isso, filha predileta do Pai e templo do Espírito Santo; por este seu dom de graça sem igual ela ultrapassa, de longe, todas as outras criaturas, celestes e terrestres” (LG 53); a sua cooperação nos momentos decisivos da obra da Salvação, realizada pelo Filho; a sua santidade, já plena na Conceição imaculada e, não obstante, sempre crescente, a medida que ela aderia à vontade do Pai e ia percorrendo a via do sofrimento (cf. Lc 2, 25-35;2,41-52; e Jo 19,25-27) e ia progredindo constantemente na fé, na esperança e na caridade; a sua missão e condição única no Povo de Deus, do qual é, ao mesmo tempo, membro sobreeminente, modelo limpidíssimo e Mãe amorosíssima; a sua incessante e eficaz intercessão, em virtude da qual, embora assumida ao céu, continua muito perto dos fiéis que a imploram, e até mesmo daqueles que ignoram ser seus filhos; a sua glória, enfim, que enobrece todo o gênero humano, como de modo admirável o exprimiu o poeta Dante: “tu és aquela que a humana natureza / nobilitaste de tal modo, que o seu Autor / não desdenhou fazer-se sua feitura”.(74) Maria, de fato, é da nossa estirpe, verdadeira filha de Eva, se bem que isenta do labéu do mal, e nossa verdadeira irmã, que compartilhou plenamente, mulher humilde e pobre como foi, a nossa condição.

Acrescentaremos, ainda: o culto da bem-aventurada Virgem Maria tem a sua suprema razão de ser na insondável e livre vontade de Deus, que, sendo a eterna e divina Caridade (cf.1Jo 4,7-8.16), realiza todas as coisas segundo um plano de amor: amou-a e fez-lhe grandes coisas (cf. Lc 1,49), amou-a por causa de si mesmo e por causa de nós e, deu-a a si mesmo e no-la deu a nós.

57. Cristo é o único caminho para o Pai (cf. Jo 14, 4-11). Cristo é o modelo supremo, ao qual o discípulo deve conformar o próprio comportamento (cf. Jo 13,15), até chegar ao ponto de ter em si os seus mesmos sentimentos (cf. Fl 2,5), viver da sua vida e possuir o seu Espírito (cf. Gl 2,20; Rm 8,10-11): foi isto o que a Igreja ensinou em todos os tempos e nada, na atividade pastoral, deve ensombrar jamais esta doutrina.

A Igreja, no entanto, instruída pelo Espírito e amestrada por uma experiência multissecular, reconhece que também a piedade para com a bem-aventurada Virgem Maria, subordinadamente à piedade para com o divino Salvador e em conexão com ela, tem uma grande eficácia pastoral e constitui uma força renovadora dos costumes cristãos.

A razão de tal eficácia pode facilmente ser entrevista. A multifacetada missão de Maria, em relação ao Povo de Deus, é, efetivamente, uma realidade sobrenatural, operante e fecunda no organismo eclesial. E dá gosto considerar cada um dos aspectos dessa missão e ver como todos eles se orientam, cada um com a sua eficácia própria, para o mesmo fim: reproduzir nos filhos as feições do Filho primogênito. Quer dizer: a materna intercessão da Virgem Santíssima, assim como a sua santidade exemplar, a graça divina, que está nela, tornam-se motivo de esperanças supernas para todo o gênero humano.

A materna missão de Maria, pois, impele o Povo de Deus a dirigir-se, com filial confiança, àquela que está sempre pronta para o atender, com afeto de mãe e com o valimento eficaz de auxiliadora (LG 60-63). Por isso, cedo começou o mesmo Povo de Deus a invocá-la sob os títulos de Consoladora dos aflitos, Saúde dos enfermos e Refúgio dos pecadores, a fim de alcançar conforto nas tribulações, alívio nas doenças e, quando ilaqueado pela culpa, a força libertadora; porque ela, isenta do pecado, leva os seus filhos a isto: a debelarem, com decisão enérgica, o pecado (LG 65). E uma tal libertação do pecado e do mal (cf. Mt 6,13), importa frisá-lo bem, é a condição necessária para toda e qualquer renovação dos costumes cristãos.

Depois, a santidade exemplar da Virgem Santíssima estimula, realmente, os fiéis a levantarem “os olhos para Maria, que brilha como modelo de virtudes sobre toda a comunidade dos eleitos” (LG 65). São virtudes sólidas e evangélicas, as suas: a fé e a dócil aceitação da Palavra de Deus (cf. Lc 1,26-28;1,45;11,27-28; Jo 2,5); a obediência generosa (cf. Lc 1, 38); a humildade genuína (cf. Lc 1,48); a caridade solícita (cf. Lc 1,39-56); a sapiência reflexiva (cf. Lc 1,29.34; 2,19.33.51); a piedade para com Deus, álacre no cumprimento dos deveres religiosos (cf. Lc 2,21.22-40.41), reconhecida pelos dons recebidos (cf. Lc 1,46-49), oferente no Templo (cf. Lc 2,22-24) e orante na comunidade apostólica (cf. At 1,12-14); a fortaleza no exílio (cf. Mt 2,13-23) e no sofrimento (cf. Lc 2,34-35.49; Jo 19,25); a pobreza levada com dignidade e confiante em Deus (cf. Lc 1,48; 2,24); a solicitude vigilante para com o Filho, desde a humilhação do berço até a ignomínia da cruz (cf. Lc 2,1-7; Jo 19,25-27); a delicadeza previdente (cf. Jo 2,1-12); a pureza virginal (cf. Mt 1,18-25; Lc 1,2638); e, enfim, o forte e casto amor esponsal. Destas virtudes da Mãe se poderão também revestir os filhos que, com firmes propósitos, souberem reparar nos seus exemplos, para depois os traduzir na própria vida. E semelhante progresso na virtude aparecerá, assim, como conseqüência e fruto já maduro também, daquela força pastoral que promana do culto tributado à Virgem Santíssima.

A piedade para com a Mãe do Senhor torna-se pois, para o fiel, ocasião de crescimento na graça divina, que é, de resto, a finalidade última de toda e qualquer atividade pastoral. Na realidade, é impossível honrar a “cheia de graça” (Lc 1,28), sem honrar o estado de graça em si próprio; quer dizer: a amizade com Deus, a comunhão com Ele e a inabitação do Espírito Santo. Esta graça divina reveste todo o homem e torna-o conforme a imagem do Filho de Deus (cf. Rm 8,29; Cl 1,18).

A Igreja católica, apoiada numa experiência de séculos, reconhece na devoção a Virgem Santíssima um auxílio poderoso para o homem em marcha para a conquista da sua própria plenitude. Maria, a Mulher nova, está ao lado de Cristo” o Homem novo, em cujo mistério, somente, encontra verdadeira luz o mistério do homem (GS 22); e está aí, qual penhor e garantia de que numa simples criatura, nela, se tornou já realidade o plano de Deus em Cristo, para a salvação de todo o homem.

Para o homem contemporâneo, - não raro atormentado entre a angústia e a esperança, prostrado mesmo pela sensação das próprias limitações e assaltado por aspirações sem limites, perturbado na mente e dividido em seu coração, com o espírito suspenso perante o enigma da morte, oprimido pela solidão e, simultaneamente, a tender para a comunhão, presa da náusea e do tédio, a bem-aventurada Virgem Maria contemplada no enquadramento das vicissitudes evangélicas em que interveio e na realidade que já alcançou na Cidade de Deus, proporciona-lhe uma visão serenadora e uma palavra tranqüilizante: a da vitória da esperança sobre a angústia, da comunhão sobre a solidão, da paz sobre a perturbação da alegria e da beleza sobre o tédio e a náusea, das perspectivas eternas sobre as temporais e, enfim, da vida sobre a morte.

A sigilar esta nossa Exortação e como um ulterior argumento em favor do valor pastoral da devoção à Virgem Santíssima, para conduzir os homens a Cristo, sejam aquelas mesmas palavras que ela dirigiu aos servos das bodas de Caná: “Fazei o que Ele vos disser” (Jo 2,5). Palavras estas limitadas, na aparência, ao desejo de achar remédio para uma complicação surgida no decorrer do convívio; mas que, na perspectiva do quarto Evangelho, são realmente palavras em que parece repercutir-se o eco da fórmula usada pelo Povo de Israel para sancionar a Aliança sinaíta (cf. Ex 19,8;24,3.7; Dt 5,27), ou para renovar os compromissos da mesma (cf. Js 24,24; Esd 10,12; Ne 5,12); e palavras, ainda, em que há uma consonância admirável com aquelas outras do Pai, quando da teofania do monte Tabor: “Ouvi-O” (Mt 17,5).

58. Tratamos amplamente, veneráveis Irmãos, de um elemento que é parte integrante do culto cristão: a veneração para com a Mãe do Senhor. Exigia-o a natureza da matéria que, nestes últimos anos, tem sido objeto de estudo, de revisão e, algumas vezes, mesmo de certas perplexidades. É para nós motivo de conforto, no entanto, o pensar que o trabalho realizado, em execução das normas do Concílio, por esta Sé Apostólica e por vós próprios, de modo particular a reforma litúrgica, há de ficar a constituir um pressuposto válido, para um culto a Deus, Pai, Filho e Espírito Santo, cada dia mais vivo e adorante, e para o crescimento da vida cristã entre os fiéis. E é motivo de confiança para nós, ainda, o verificar que a Liturgia romana renovada constitui, no seu conjunto, também ela, um fúlgido testemunho da piedade da Igreja para com a Santíssima Virgem. Alenta-nos a esperança de que as diretrizes emanadas em ordem a tornar cada vez mais límpida e vigorosa essa piedade virão a ser sinceramente aplicadas. E confessamos a nossa alegria, por fim, por o Senhor nos ter concedido a oportunidade de apresentar alguns pontos de reflexão que visam renovar e confirmar a estima em relação à prática do santo Rosário. Conforto, confiança, esperança e alegria são os sentimentos que, unindo a nossa voz à voz da Virgem Maria, como implora a Liturgia romana,(75) queremos traduzir em fervoroso louvor e ação de graças ao Senhor.

Ao mesmo tempo que auspiciamos, portanto, que graças à vossa aplicação generosa, Irmãos caríssimos, se verifique entre o clero e entre o povo confiado aos vossos cuidados, um salutar incremento da devoção mariana, com indubitável proveito para a Igreja e para a sociedade humana, outorgamo-vos, do coração, a vós e a todos os féis em prol dos quais se exercita o vosso zelo pastoral uma especial bênção apostólica.

Dada em Roma, junto de São Pedro, no dia 2 de fevereiro, Festa da Apresentação do Senhor, do ano de 1974, décimo primeiro do nosso pontificado.



PAULUS PP. VI

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