MARIA: DA OBSCURIDADE A UMA CRESCENTE GLORIFICAÇÃO ATRAVÉS DA HISTÓRIA


A Santíssima Virgem, por humildade, procurou durante a sua vida a obscuridade, sendo esta necessária também para velar sua excelsa beleza e seu esplendor. A devoção a Nossa Senhora foi sendo progressivamente explicitada pelos teólogos e pelo povo fiel ao longo dos séculos.

No dia 25 de março de 1646, Portugal foi solenemente consagrado a Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa, pelo Rei Dom João IV, acompanhado pelas Cortes Gerais do Reino.

Desde então o Brasil, parte integrante do império luso, viu-se colocado sob o especial patrocínio da Imaculada Conceição.

Esse patrocínio de certa forma prossegue até hoje, pois após a emancipação política de nossa terra, em 1822, foi também à Virgem Imaculada, com o título de Aparecida, que o Brasil quis se consagrar.

Quando Portugal se consagrou em 1646 a Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa, Rainha e Padroeira de Portugal, cuja imagem figura em nossa capa, ainda estava longe de ser aceita em toda a Igreja o ensinamento de que a Santíssima Virgem fora concebida sem pecado original, o que em 1854 Pio IX definiria como dogma de Fé.

Na realidade, a explicitação do dogma da Imaculada Conceição foi fruto de um lento e gradativo processo do qual participaram, cada qual a seu modo, Papas, Santos, Doutores e até os simples fiéis.

Diz São Luís Maria Grignion de Montfort (1673-1716), o grande Doutor marial dos tempos modernos, que Nossa Senhora obteve de Deus a graça de permanecer oculta ao longo de toda a sua vida terrena, e tão oculta que nem sequer os Evangelhos falaram muito dEla (1).

Isso correspondia, sem dúvida, a um desejo do humílimo Coração de Maria, que Deus se comprouve em atender. Mas correspondia também a uma necessidade. Pois naqueles tempos remotos, muitos espíritos embrutecidos pelo politeísmo geralmente dominante, se vissem Nossa Senhora em todo o seu esplendor, facilmente seriam tentados a fazer d'Ela uma deusa, afastando-se assim da verdadeira crença num só Deus Uno e Trino, Todo-Poderoso, criador de todas as coisas.

E não era pequeno esse risco, pois na ordem da graça, mas também na ordem da natureza, Maria foi a obra prima do Criador, apenas superada pelo Homem-Deus.

Nossa Senhora tinha uma distinção extraordinária. Princesa da Casa Real de David, foi nobilíssima. Possuía, ademais, um corpo perfeitíssimo e uma beleza física deslumbrante. O maravilhoso, observa São Boaventura (2), é que tendo Ela uma beleza tão deslumbrante, nunca foi desejada por homem algum.

O porquê dessa maravilha é explicado por Dionísio Cartuxo ao comentar a expressão da Escritura "como lírio entre espinhos": "Ainda que tenham existido muitas virgens santas, sem embargo em relação à Virgem é como se fossem espinhos, já que tinham em si algo de culpa; e ainda que fossem pessoalmente puras, a concupiscência, entretanto, não estava completamente extinta nelas, e foram também espinhos para outros, que ao vê-las se sentiam excitados pelo desejo.

Mas a Virgem Mãe de Deus foi completamente livre de toda a culpa; a concupiscência foi inteiramente extinta nEla; e viveu tão plena de intensa castidade, e de tal maneira penetrou com essa sua incomparável virtude os corações dos que a olhavam, que não pôde ser desejada por nenhum; antes pelo contrário extinguia imediatamente neles todo desejo carnal" (3).

O mesmo ensinou Santo Tomás de Aquino: "A graça da santificação não só reprimiu na Virgem os movimentos ilícitos, mas também nos outros obrou com plena eficácia, de modo que mesmo sendo formosa de corpo, ninguém a desejasse" (4).

"Virgem pura, e única Imaculada -- escreveu São Tomás de Vilanova -- em quem a virgindade teve a nota distintiva de tornar virgens os que a olhavam, pois a sua virgindade era tal que engendrava virgens" (5).

Brilho singular na face

A par da extraordinária beleza física, Nossa Senhora deve ter tido no rosto um singular brilho, no sentido próprio do termo. Narra a Escritura que Moisés, depois de ter conversado com o Senhor, adquiriu no rosto um tal fulgor que os hebreus não conseguiam olhá-lo de frente, e para falar com ele precisaram cobrir-lhe o rosto com um véu (6). Privilégio semelhante tiveram muitos santos, cujos rostos, depois de terem tido algum contato especial com o sobrenatural, brilhavam e resplandeciam.

Um privilégio desses não poderia deixar de ser concedido a Nossa Senhora, que não apenas teve contatos fugazes com Deus, mas era a própria Mãe de Deus, que levara em seu seio, durante nove meses, o próprio Verbo encarnado, e com Ele convivera intimamente durante 30 anos. Mais uma vez, cabe citar Dionísio Cartuxo:

"Quanto mais a amabilíssima e gloriosíssima Virgem Maria, ainda menina e adolescente, foi objeto das mais abundantes infusões de todos os carismas, tanto mais essa mesma exuberância resplandecia em seu rosto e em seu olhar; e quanto mais abundantemente e melhor aproveitava a cada dia em toda a graça e virtude, em toda a luz da contemplação, na claridade da teologia mística, na pureza interna e na santidade angélica, tanto mais aquela luminosa sinceridade interior celestial e divina aparecia claramente na face da sacratíssima Maria, e, como dizem também grandes doutores, visivelmente se irradiava. Parece-me, entretanto, que essa radiação foi temperada pela moderação divina, para que fosse suportável no trato com os homens, e para que sua excelência não se manifestasse demasiado antes do tempo oportuno" (7).

Esplendor velado

Vemos assim que, segundo o Cartuxo Dionísio, o próprio Deus parece ter querido fazer, em relação a Nossa Senhora, o que fizeram os hebreus em relação a Moisés: pôr um véu que velasse tanto resplendor. Não, porém, a ponto de ocultá-lo inteiramente. Quem tratava com Nossa Senhora devia ficar literalmente fascinado pela sua personalidade ímpar.

Ora, naqueles tempos os pagãos embrutecidos facilmente concediam honras e culto de deuses a simples homens carregados de defeitos morais, como tantos imperadores romanos, e até mesmo a animais e a coisas indignas. Basta lembrar que em Roma era cultuada como deusa a cloaca máxima, ou seja, o grande esgoto que despejava no Tibre todas as imundícies da cidade!

Era, pois, muito grande o risco de que, se vissem Nossa Senhora em todo o seu esplendor, tomassem-nA por uma deusa (8). Daí o ter querido o próprio Deus velá-La cuidadosamente nas Escrituras, como escondida foi Ela em sua vida terrena.

Segundo o célebre Fr. Tomé de Jesus, Maria Santíssimia "até no exterior mostrava uma tão soberana perfeição, que São Dionísio Areopagita diz que, se a Fé não lhe tivera ensinado que havia um só Deus, quando viu a Virgem Nossa Senhora cuidara julgado que nEla estava acabada a divindade" (8).

"Revelação progressiva" de Maria

Deus ocultou a Santíssima Virgem durante sua vida terrena, mas reservou para Ela uma forma muito peculiar de glorificação posterior. Ele quis que, ao longo dos séculos, a Igreja fosse pouco a pouco explicitando as glórias e as grandezas de Maria, mais ou menos implicitamente contidas nas Escrituras, mais ou menos explicitamente formuladas pela Tradição.

Essa como que "revelação progressiva" de Maria diante de toda a Igreja é um dos mais belos aspectos do progresso da ciência teológica. É razoável supor que no fim dos tempos, quando Nosso Senhor voltar com glória à Terra para julgar os vivos e os mortos, a essa altura tenha a Igreja concluído -- tanto quanto neste mundo é possível concluir -- o imenso trabalho de muitos séculos de explicitação das glórias mariais.

Alguém poderia objetar que essa "revelação progressiva" de Maria parece chocar-se com o fato -- que é de Fé -- que a Revelação oficial se encerrou com a morte do último Apóstolo.

Na realidade, o progresso da Mariologia, como o progresso da Teologia em geral, não se trata de uma revelação nova, mas trata-se de um desenvolvimento, de uma elaboração do intelecto humano, ajudado pela graça, a partir de verdades que já estavam contidas, embora menos explicitamente, na Revelação oficial encerrada no século I.

Duas vertentes de explicitação

Esse esforço multissecular de explicitação das grandezas mariais tem duas vertentes que, embora na aparência se contraponham entre si, na realidade se completam harmoniosamente: de um lado, a elite intelectual da Igreja, de outro, o bom povinho de Deus.

Compete aos teólogos, aos doutores, aos estudiosos da ciência mariológica, seguindo metodologia científica, aplicar seu esforço intelectual e procurar, a partir da Revelação, da Tradição, do Magistério da Igreja, deduzir verdades, de modo a constituir todo um arcabouço doutrinário lógico e coerente.

Como é próprio do cientista questionar, a priori e por método, tudo quanto aparece de novo na área de seus estudos, muitas vezes esses estudiosos da ciência mariológica examinam com espírito crítico certas manifestações populares espontâneas de amor e devoção para com Nossa Senhora. O que para um católico fervoroso comum, sem grandes luzes intelectuais, pode parecer evidentemente verdadeiro, nem sempre é suficiente para contentar o exigente intelectual.

Ao bom povinho de Deus, que muitas vezes intui certas realidades de ordem sobrenatural sem entretanto saber explicá-las (e, mesmo, sem sentir qualquer necessidade de explicá-las), a atitude reservada do teólogo pode parecer fria, pouco fervorosa, até suspeita.

Ambas as vertentes podem sem dúvida pecar por excesso: de um lado, cair-se na credulidade infantil e pouco esclarecida; de outro, no espírito ácido e hiper-crítico.

Curiosamente, se observarmos ao longo da História da Igreja o processo de explicitação de certos dogmas -- e especificamente o da Imaculada Conceição -- veremos que ambas as vertentes, a popular e a douta, embora tenham até certo ponto se entrechocado, na realidade colaboraram intimamente entre si. Numa como noutra trabalhava a graça de Deus. E o resultado dessa colaboração só se pôde admirar convenientemente quando se pronunciou, definitiva e infalivelmente, o Supremo Magistério da Igreja.

Essa feliz colaboração das duas vertentes aparentemente opostas e conflitantes, soube apanhá-la com felicidade o Papa Paulo VI, quando, falando em 16 de maio de 1975 aos participantes do VII Congresso Mariológico Internacional e aos participantes do XIV Congresso Mariano Internacional, lhes explicava como se deve apresentar Nossa Senhora aos homens de nosso tempo:

"Duas vias podem ser seguidas. A via da verdade, antes de tudo, ou seja, a da especulação bíblico-histórico-teológica, que concerne à exata colocação de Maria no mistério de Cristo e da Igreja: é a via dos doutos, aquela que vós seguis, certamente necessária, pela qual progride a doutrina mariológica. Mas além dessa há também outra, uma via acessível a todos, até mesmo às almas simples: é a via da beleza, para a qual conduz, afinal, a doutrina misteriosa, maravilhosa e estupenda que constitui o tema do congresso mariano: Maria e o Espírito Santo. Com efeito, Maria é a criatura tota pulchra; é o speculum sine macula; é o ideal supremo de perfeição que em todos os tempos os artistas procuraram reproduzir em suas obras; é a mulher vestida de sol (Ap. 12, 1), na qual os raios puríssimos da beleza humana se encontram com os sobre-humanos, mas acessíveis, da beleza sobrenatural" (9).

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