GALERIA DOS SOBREVIVENTES



FONTE: REVISTA ULTIMATO

Jó antes de Habacuque


Jó, o patriarca de Uz, de um dia para o outro, perdeu toda a riqueza (11.500 cabeças de gado) e quase todos os empregados (administradores, agricultores, boiadeiros, carreiros, cortadores de lã, guardas das torres de vigia, plantadores de capim, roçadores de pasto, tiradores de leite, tratadores de animais, vendedores de gado etc.). Perdeu os dez filhos quando a casa onde eles estavam comemorando o aniversário do irmão mais velho desabou e soterrou todos eles. No dia seguinte, havia dez caixões com defuntos para Jó enterrar. Pouco depois da perda dos bens e dos filhos, Jó perdeu a saúde -- o mais precioso bem que alguém pode possuir. A doença era tão desgastante que o levava a desejar ansiosamente a morte. Poderia ser dermatose escamosa, elefantismo, eczema crônico, melanoma ou outra. Ele portava “feridas terríveis, da sola dos pés ao alto da cabeça”, raspava-se com caco de louça e ficou tão desfigurado que seus amigos não o reconheceram e começaram a chorar em alta voz diante daquele quadro aterrador (Jó 2.12-13). O mesmo fazendeiro perdeu a companhia religiosa e o aconchego da esposa, tão enlutada quanto ele. Ela se revoltava contra Deus e queria que o marido fizesse o mesmo (Jó 2.9). A esposa de Jó mantinha-se à distância por questões de saúde: “Minha esposa não chega perto de mim por causa do mau cheiro que sai de minha boca quando falo” (Jó 19.17, BV). O incrível sofredor experimentou ainda a dor da solidão, após a ruína financeira e a nova e feia aparência: “Os meus parentes me abandonaram e os meus amigos esqueceram-se de mim” (Jó 19.14). Como se não bastasse todo esse sofrimento, Jó teve de enfrentar o juízo temerário de todos, especialmente dos amigos mais íntimos, que interpretaram sua desgraça como castigo por algum pecado secreto que ele teria cometido.

Apesar dessa inexplicável e incontida enxurrada de dores e de injustiças, o patriarca de Uz resistiu a tudo por todo o tempo, ancorado numa única pessoa e numa única esperança: “Eu sei que meu Redentor vive, e que no fim se levantará sobre a terra” (Jó 19.25).

Habacuque antes de Paulo

Cerca de 2.500 anos antes da ameaça nazista, os judeus enfrentaram a ameaça babilônica. O grande império de Nabucodonosor estava dominando o mundo. Duas poderosas nações já haviam caído: a Assíria em 612 antes de Cristo, e o Egito, sete anos mais tarde, na famosa batalha de Carquemis (605 a. C.). A próxima nação a ser cercada, destruída e ocupada seria Israel, mais propriamente Judá, o reino do sul. A escassez de comida e a consequente fome eram iminentes. Boa parte da população seria deslocada para longe de sua pátria e muitos sofreriam como escravos e trabalhadores forçados. A beleza de Jerusalém seria coisa do passado. Suas riquezas seriam pilhadas e levadas pelos invasores. Para continuar a viver, os que tinham algum bem o trocariam por comida (Lm 1.1-12). Crianças diriam às mães: “Estou com fome! Estou com sede!”. Sem pão para comer nem água para beber, as crianças cairiam pelas ruas e os bebês morreriam aos poucos nos braços das mães. Estas, por sua vez, por causa da fome, perderiam o controle e devorariam os filhinhos que tanto amavam. Os mortos, tanto jovens como velhos, seriam largados nas ruas (Lm 2.11-21). Os que haviam morrido no campo de batalha seriam considerados mais felizes do que os que morreriam depois, por causa do caos posterior à guerra (Lm 4.9).

Não obstante, frente a essa situação catastrófica prestes a acontecer, um homem chamado Habacuque, que era profeta e poeta, explica como poderia sobreviver: “Ainda que as figueiras não produzam frutas, e as parreiras não deem uvas; ainda que não haja azeitonas para apanhar nem trigo para colher, ainda que não haja mais ovelhas nos campos nem gado nos currais, mesmo assim eu darei graças ao Senhor e louvarei a Deus, o meu Salvador. [Pois] o Senhor é a minha força. Ele torna o meu andar firme como o de uma corça e me leva para as montanhas, onde estarei seguro” (Hc 3.17-19, NTLH).

Paulo antes de Viktor Frankl

Quando Jesus apareceu a Saulo no trevo da cidade de Damasco, capital da Síria, perto do final da primeira metade do século primeiro, ele não escondeu do futuro apóstolo que haveria sofrimento por causa do evangelho (At 9.16). De acordo com o relatório desse sofrimento, contido na Segunda Carta aos Coríntios, escrita em 55 depois de Cristo, Paulo foi apedrejado uma vez, espancado três vezes, chicoteado cinco vezes (cada uma com 39 açoites) e passou por três naufrágios (num deles ficou 24 horas boiando no mar). Além disso, ele muitas vezes ficou sem dormir, sem comer, sem beber, sem se vestir e sem se agasalhar. Experimentou toda sorte de perigos (de morte, de enchentes, de assaltos), nas mãos de conterrâneos, de estrangeiros, de ladrões, de falsos irmãos etc., tanto na cidade como no deserto e em alto-mar. E como se não bastasse, Paulo foi preso várias vezes e passou muito tempo atrás das grades, em Filipos, Jerusalém, Cesareia e principalmente em Roma.
Apesar de todas essas circunstâncias e acontecimentos adversos, o apóstolo sobreviveu sem maiores desgastes físicos ou emocionais. E ele explica o segredo: “Sei o que é estar necessitado e sei também o que é ter mais do que é preciso. Aprendi o segredo de me sentir contente em todo lugar e em qualquer situação, quer esteja alimentado ou com fome, quer tenha muito ou tenha pouco. Com a força que Cristo me dá, posso enfrentar qualquer situação” (Fp 4.12-13).

E hoje?

A sobrevivência é um desafio também para o mundo contemporâneo. Antes do término da Segunda Guerra Mundial, ninguém sabia muito sobre os campos de concentração da Alemanha nazista e sobre o tamanho do holocausto -- nem os próprios alemães. Hoje, não percebemos que também estamos dentro de outros campos de concentração, que tornam a sobrevivência da fé e da moral quase impossível. Quantos mortos o narcotráfico e o crime já deixaram no mundo todo desde o final da Segunda Guerra até hoje? A lei do mais forte prevalece, a cultura da corrupção é uma regra fixa, a determinação de destruir os ramos e raízes da fé cristã continua (seja pela perseguição e morte de cristãos em países islâmicos fechados ou pelos escândalos que os próprios cristãos cometem), a propaganda do “ter” em vez de “ser” é esmagadora, a chamada ao consumismo é praticamente irresistível, a defesa da homossexualidade e da não-durabilidade do casamento é crescente, a pornografia e a violência sexual generalizam-se, e assim por diante. A mídia abraça e divulga todas essas coisas, das tirinhas aos editoriais, das novelas aos noticiários. Certamente, as características, os sintomas e os descaminhos contemporâneos podem ser vistos como um campo de concentração acentuadamente sutil. O excelente vídeo “Qualidade de vida do mundo contemporâneo”, da TV Cultura, do qual participam filósofos e educadores brasileiros, diz que estamos perdendo a capacidade de pensar, estamos perdendo a vitalidade e estamos sendo manipulados e conduzidos pela voz tirânica da prioridade do mercado, pelo ascetismo e pelo individualismo. Tudo isso leva à desgraça do tal vazio existencial, diagnosticado por Viktor Frankl como a neurose do século. Seriam essas coisas mais leves do que aquelas que Jó, Habacuque e Paulo sofreram? A Bíblia fala muito sobre a difícil arte da sobrevivência. Jesus chega a perguntar: “Quando o Filho do Homem vier, será que vai encontrar fé na terra?” (Lc 18.8, NTLH).

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