UM LABORAT�RIO DE INTEGRA��O SOCIAL
Por: Fernanda Pompermayer
Ter�a-feira, 23 de novembro. Quando, no Rio de Janeiro, o clima de guerra civil entre a Pol�cia e as fac��es que controlam o tr�fico de drogas, nos morros cariocas, estava no auge, eu me encontrava em Florian�polis, no Maci�o do Morro da Cruz. Coincidentemente, o meu objetivo era fazer uma reportagem, justamente sobre um trabalho social de preven��o � viol�ncia, no Morro de Mont Serrat.
Esse projeto surgiu para oferecer uma op��o de vida digna a crian�as, adolescentes e jovens cuja �nica perspectiva era o mundo do crime e da droga. Analogamente � situa��o do Rio de Janeiro ? e respeitando as devidas propor��es ?, o Morro de Mont Serrat era sin�nimo de uma realidade de mis�ria e viol�ncia numa regi�o urbana central da Ilha de Santa Catarina.
Embora conhecendo o trabalho, ao chegar ao local deparei-me n�o com um projeto, mas com uma vasta gama de iniciativas: sete ONGs que atualmente articulam 15 projetos em 30 �reas diferentes. Os trabalhos giram ao redor do Centro Cultural Escrava Anast�cia (CCEA), fundado em junho de 1994, por Vilson Groh (56), sacerdote que j� atua no local desde 1983. Catarinense de Brusque, ele � tamb�m mestre em Educa��o pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Tudo come�ou...
O ponto de partida desse leque de projetos est� ligado a um contexto hist�rico: a primeira metade dos anos 1980, na passagem da ditadura para a abertura pol�tica, em meio � efervesc�ncia dos movimentos sociais que come�aram a surgir no Brasil. Vilson Groh, sens�vel, desde a adolesc�ncia, � realidade social, participou de Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), teve contato com a Teologia da Liberta��o e, em 1976, conheceu o Movimento dos Focolares. Portanto, "o caldo cultural da constru��o do meu pensar social baseado na radicalidade do Evangelho" ? afirma o sacerdote ? "parte desse contexto, que me levou a fazer uma escolha de vida ligada ao documento de Puebla (1979), no qual a Igreja da Am�rica Latina fez uma op��o preferencial pelos pobres".
No decorrer dos anos, Vilson foi descobrindo o enorme capital social e humano da popula��o empobrecida em meio � qual vivia. Foi a partir da intera��o entre o sacerdote e a comunidade que surgiram os diversos projetos de promo��o humana e social, a partir do princ�pio de que os moradores do Morro deveriam ser os protagonistas da pr�pria hist�ria. Na conviv�ncia com eles, foram surgindo os modos de enfrentamento das graves situa��es sociais locais.
Segundo Ivone Perassa, coordenadora geral dos projetos do CCEA, a inser��o das pessoas nas v�rias etapas dos projetos tem sido a garantia do sucesso deles. Um sucesso que pode ser comprovado pelos n�meros. Segundo a coordenadora, nas comunidades em que a institui��o tem uma atua��o direta com a juventude ligada ao tr�fico de drogas e ao universo da criminalidade, o resultado tem sido a queda do �ndice de criminalidade, o retorno � escola e a inser��o no mundo do trabalho, num percentual que beira os 80%."
Projetos complementares
� imposs�vel descrever, numa �nica mat�ria, a abrang�ncia dos projetos do Morro de Mont Serrat. Eles abarcam desde abrigos para crian�as em situa��o de vulnerabilidade social e familiar, a estruturas para o refor�o escolar; desde o encaminhamento de adolescentes j� envolvidos com o tr�fico para outras atividades at� cursos profissionalizantes para jovens, al�m da arrecada��o de bolsas de estudo em v�rias universidades catarinenses.
O projeto "Procurando Caminho", por exemplo, serve-se do esporte de aventura como um meio de resgate da dignidade dos adolescentes e jovens e de reintegra��o social. Surgiu depois do assassinato de dois jovens da comunidade por gangues do narcotr�fico. O projeto nasceu para oferecer aos jovens alternativas aos apelos de uma vida � margem da lei, criando uma escola de surfe e uma atividade produtiva de conserto e fabrica��o de pranchas de surfe.
Mateus Alexandre Hoerlle, professor de Educa��o F�sica, deixou a escola em que lecionava para se dedicar ao projeto "Procurando Caminho". Ele v� essa sua atividade como uma verdadeira voca��o, um legado da sua vida para esses jovens. Os resultados concretos na reintegra��o de jovens "condenados � morte" pelo narcotr�fico, na vida da comunidade, e as perspectivas profissionais, que o projeto est� abrindo, confirmam que Mateus tem raz�o.
Segundo Jorge Ribeiro Portela, que tamb�m atua no mesmo projeto, dos 25 adolescentes de 13 a 15 anos com os quais ele trabalha, "20 j� estariam mortos ou presos se n�o estivessem inseridos nesse projeto".
A f�brica de pranchas bem como outras atividades profissionalizantes que envolvem os jovens t�m sua sede no antigo pr�dio do Instituto M�dico Legal de Florian�polis, que foi cedido pelo governo municipal. Um fato emblem�tico do processo de transforma��o que os projetos sociais est�o realizando no Morro de Mont Serrat: o local onde eram colocados os cad�veres ? muitos deles v�timas da viol�ncia ? hoje � um laborat�rio de trabalho e de forma��o humana de jovens.
Educados para educar
Alan Ribeiro Rodrigues � gestor de neg�cios e trabalha atualmente no projeto "Apoio ao Desenvolvimento Escolar", com a obten��o de bolsas de estudo ? cerca de 30 por semestre ? junto �s universidades privadas da Grande Florian�polis, para os jovens do Morro.
O trabalho de Alan "� uma forma de agradecimento aos projetos do CCEA". De fato, ele conseguiu estudar e chegar � conclus�o da universidade, gra�as �s diversas iniciativas de promo��o social no Mont Serrat. "Hoje eu estou dando continuidade ao trabalho social pelo qual fui ajudado. Comecei como volunt�rio para retribuir a ajuda que me foi concedida, e agora sou funcion�rio do CCEA."
Na linha de investimento em educa��o e acesso � universidade, o CCEA proporciona cerca de 120 vagas anuais num dos melhores cursos pr�-vestibulares da capital catarinense. O �ndice de aprova��o nas universidades p�blicas e privadas dos jovens, com os quais o Centro trabalha, tem sido de 80%.
Outro exemplo de algu�m que chegou � universidade devido aos projetos sociais do Mont Serrat, e que hoje se dedica a eles, � o advogado M�rio Davi Barbosa. Ao formar-se em Direito, ele se colocou � disposi��o do CCEA e, atualmente, � o advogado do Centro de Atendimento a V�timas de Crimes (CEAV), que oferece acompanhamento psicol�gico e jur�dico a mulheres que sofrem viol�ncia dom�stica e a outras v�timas de agress�es.
Processo em rede
A gama de projetos do CCEA � muito ampla, mas h� um denominador comum que motivou o surgimento de cada um deles. "N�s temos uma miss�o, que � o cuidado com a vida. Para isso, temos que realizar uma s�rie de projetos diferentes e complementares, mas todos eles buscam a preserva��o da vida e a sua qualidade", � o que explica Willian Carlos Narzetti, economista, com p�s-gradua��o em Gerenciamento de Projetos, e coordenador do "Projeto Aroeira", voltado para a capacita��o profissional de jovens.
Um aspecto importante do trabalho do CCEA � a sua articula��o com outras entidades que oferecem apoio log�stico ou financeiro aos projetos e tamb�m com outras inst�ncias da vida cultural, social e pol�tica de toda a cidade, gerando uma rede extensa e compacta.
Segundo pe. Vilson, s� � poss�vel mudar o quadro social da periferia se houver uma interven��o nas estruturas da cidade, as quais criam desigualdade e injusti�as. N�o basta, segundo ele, intervir nas consequ�ncias dessas estruturas. Com efeito, afirma, "a pobreza � decorrente de um sistema cuja raiz s�o as estruturas injustas, e � nelas que o CCEA procura agir". Da� a import�ncia de trabalhar num processo em rede.
"O processo em rede traz tamb�m a quest�o das interfaces da cidade" ? diz o pe. Vilson. "Ou seja: centro e periferia, ou vice-versa, se relacionam. Precisamos pensar nas interfaces com os mundos da pol�tica, da cultura, da economia, da intelectualidade, da arte". Muitos projetos s�o realizados em parceria com o empresariado catarinense e com pessoas e entidades representativas das classes m�dia e alta de Florian�polis.
Com o seu m�todo de trabalho em rede, o CCEA est� ajudando todas as esferas da sociedade a se envolverem na busca de solu��es para os problemas da cidade. "N�o para substituir o Estado" ? conforme explicou Pe. Vilson ? "mas para construir uma esfera p�blica que ajude a estabelecer uma rela��o entre Estado e sociedade civil capaz de gerar espa�os de consolida��o de pr�ticas e projetos que, com o tempo, tornem-se pol�ticas do Estado."
CCEA em n�meros
7 ONGs que atuam no resgate social e educacional
15 projetos em 30 �reas
450 jovens que frequentam universidades
80% dos envolvidos nos projetos reinseridos nas escolas e fora do giro do narcotr�fico
40 mil pessoas envolvidas direta ou indiretamente nos projetos.
Os resultados desse vasto leque de iniciativas podem ser observados em diversos �mbitos, mas principalmente na educa��o. Nessa �rea, h� uma rede de projetos que abrange pessoas de 6 a 24 anos. Dos 6 aos 15, elas participam do per�odo estendido, ou seja, quando n�o est�o na escola, t�m aulas de refor�o e outras atividades pedag�gicas; dos 15 aos 18 anos, v�o para o programa "Aprendiz", que oferece cursos t�cnicos profissionalizantes que correspondem � demanda do mercado; dos 18 aos 24, frequentam as escolas de Ensino M�dio, o curso pr�-vestibular e ingressam na universidade. Nessa �ltima etapa, participam tamb�m de projetos nas �reas de cooperativismo, gera��o de trabalho e renda, profissionaliza��o, e de inser��o no mercado de trabalho.
O grito de Jesus na cidade
Tr�s perguntas a Vilson Groh, sacerdote que iniciou o trabalho no Morro de Mont Serrat
Sabemos que o trabalho social do senhor tem uma forte motiva��o espiritual. Poderia dizer algo a esse respeito?
Na minha juventude, eu participei das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e da Teologia da Liberta��o, com a "sua op��o preferencial pelos pobres", que sempre me acompanhou no empenho social. Mas um fato importante foi o meu encontro com a espiritualidade do Movimento dos Focolares em 1976.
O ponto chave ? o elemento fundante ? para mim, nessa espiritualidade, foi Jesus crucificado e abandonado, cujo grito "Meus Deus, meu Deus, por que me abandonaste?" eu identifiquei no sofrimento dos mais pobres e desamparados. Ele, Jesus abandonado, tem o rosto da popula��o negra, da crian�a abandonada, do jovem desempregado. Ele � real, concreto.
O que o motiva e o sustenta para continuar seguindo em frente?
O que me d� for�a, energia, como padre, � a ascese ? que eu encontro no grito de Jesus crucificado e abandonado ? e a m�stica, que � o Ressuscitado, que gera a cultura da vida.
A beleza do nosso trabalho est� em olhar esta realidade dram�tica como algo poss�vel de transforma��o, e n�o como algo negativo. � uma realidade gr�vida de esperan�a, de perspectivas, de sonhos... O olhar teologal nos leva a recuperar a express�o de um Deus que gera a vida.
Para mim, a dimens�o do sacerd�cio � recuperar a f� em Jesus com a��es e gestos, com o radicalismo do Evangelho, que � uma resposta � Am�rica Latina. Acho que n�s ainda n�o descobrimos a for�a que o Evangelho tem para o processo de transforma��o social.
Quando o nosso agir vira pura ideologia, n�s perdemos a for�a que move misticamente esse continente e que gera as oportunidades e as sa�das. Mas quando temos essa for�a, o minist�rio sacerdotal torna-se "avental", torna-se servi�o, e constru�mos uma Igreja mariana: da sensibilidade, da compaix�o, da esperan�a, da missionariedade, da acolhida e do cuidado com a vida.
O cuidado com a vida deve ser um gesto amoroso, o gesto de Jesus. A Eucaristia que eu celebro todos os dias, �s 6h30, � um modo de comungar com a realidade que o mundo vive, a fim de que os meus gestos tornem-se, durante o dia, gestos eucar�sticos. O que n�s fazemos n�o � obra nossa, � obra de Jesus: n�s somos apenas instrumentos.
Isso requer um tempo de m�stica, pois se n�o fosse assim, eu viraria um assistente social, um soci�logo, um antrop�logo, um pol�tico. Para mim, a diferencia��o do meu trabalho � teologal: eu olho essa realidade com o olhar de Deus, com o cora��o de Deus.
O seu trabalho foi reconhecido pela sociedade com muitos pr�mios...
Sim, em 2008 recebi o "Pr�mio Betinho ? Atitude Cidad�". Mais recentemente o "Amigo da Comunidade", concedido pela Rede Brasil Sul de Comunica��o (RBS), entre outros.
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