O dom mais sublime de ser Peregrino.
Como cristãos devem viver no mundo? Até que ponto cristãos devem amar o mundo? Qual é o limite de amarmos a nossa pátria verde e amarela?
Essas são perguntas de suma importância para a fé cristã. Para respondermos satisfatoriamente a tais questões, precisamos definir pelo menos duas coisas: o que queremos dizer com “cristão” e com “mundo”.
Parece-me que muito do mau entendimento do nosso papel como cristãos no mundo vem de uma compreensão confusa sobre como o Novo Testamento usa a palavra mundo. Ali, ela possui diversos significados: 1. O universo de forma mais ampla (Atos 17.24); 2. A terra onde os homens habitam (Mateus 4.8); 3. O sistema de vida anti-Deus controlado por Satanás e seus agentes (João 7.7; Efésios 2.2); 4. Os não salvos (1 Coríntios 6.2); 5. A população mundial (João 3.16).
Por causa disso, precisamos ter cautela ao responder como o cristão se relaciona com o mundo. Aqui vão alguns exemplos:
O cristão deve amar o mundo como a boa criação de Deus;
O cristão deve odiar o mundo como um sistema de valores em oposição à Deus;
O cristão deve pregar o evangelho ao mundo;
O cristão deve ter em mente que Deus ama o mundo enquanto população mundial;
O cristão deve amar o mundo enquanto humanidade.
Esclarecida a relação do cristão com as diversas possibilidades do conceito mundo, vamos olhar mais de perto uma ideia bíblica que percorre o Antigo e o Novo Testamentos, a imagem do peregrino. O que significa ser um peregrino A Bíblia possui duas palavras que trazem este conceito: “paroikos”, traduzida como estrangeiro, e “parepidemos”, como peregrinos. O sentido básico das palavras é o mesmo: “ser um residente temporário de algum lugar”.
Peregrinos moram em outra terra, com outros povos, de forma provisória, aguardando o retorno para sua terra natal. Esse conceito é muito familiar ao povo israelita que viveu assim exilado no Egito, na Assíria e na Babilônia. O texto de Hebreus 11.13 diz: “Todos estes morreram na fé, sem ter obtido as promessas; vendo-as, porém, de longe, e saudando-as, e confessando que eram estrangeiros e peregrinos sobre a terra.”
Esse texto refere-se aos patriarcas Abraão, Isaque e Jacó, aos quais fora prometido que seriam um grande povo e viveriam em uma terra onde a benção de Deus seria abundante (Gênesis 12.1-3). Eles andaram por este mundo como peregrinos e morreram sem ver a terra prometida, que o autor chama de pátria ou cidade celestial (Hebreus 11.16). Semelhante aos nossos antepassados, o apóstolo Pedro nos ensina a vivermos como peregrinos neste mundo (1Pedro 2.11). Mas, o que isso nos ensina na prática?
1) Ser peregrino é viver em outro país como se estivesse em seu próprio país. Embora o estrangeiro viva num lugar diferente do seu, seu desafio é permanecer com os seus próprios valores. Ele é tentado a negar de onde veio e adaptar-se à cultura ao seu redor, mas sabe que sua missão é viver num lugar estranho, mantendo os valores de sua terra natal. Da mesma forma, nós cristãos temos a consciência de que pertencemos a um lugar muito melhor, mas vivemos aqui como se já estivéssemos chegado lá.
Todo peregrino precisa evitar duas tentações: alienação e imitação. Por um lado ele é tentado a viver isolado de tudo e todos, como um alienado que tem desprezo pelo mundo em que vive. Por outro, é seduzido a imitar a maneira como as pessoas vivem ao seu redor e esquecer-se de que ele pertence a uma realidade infinitamente superior. Sua opção não é pela alienação ou pela imitação do mundo, mas pela transformação dele.
Assim, o cristão que faz diferença no mundo é aquele que decide viver os valores do reino de Deus mesmo rodeado pelos valores do reino das trevas, do pecado e do diabo. Não nos conformamos com o esquema do nosso tempo, mas somos transformados todos os dias pela renovação de nossa mente (Romanos 12.2).
2) Ser peregrino também é viver a espera do nosso novo mundo enquanto ainda estamos neste. Estamos neste mundo, mas pertencemos a um novo mundo. O maior sonho de um estrangeiro exilado é poder respirar novamente os ares de seu verdadeiro lar. De forma semelhante, um dia nós iremos conhecer nosso verdadeiro lugar de origem. O autor de Hebreus chama esse lugar de “cidade celestial” não porque é uma realidade imaterial, mas porque é uma cidade física inundada pela presença de Deus.
Estamos voltando para casa e algo muito maior e glorioso nos espera. As promessas que Deus fez no passado são como sombras perto da imagem perfeita que ele há de nos mostrar. A velha terra que Deus prometeu aos patriarcas era só um protótipo da nova terra que Deus promete a todo o seu povo através de Jesus. O Éden em que o primeiro casal pisou é um microcosmo em relação ao macrocosmo do novo céu e nova terra que o Pai prometeu aos seus filhos.
Ser peregrino significa viver sob a tensão de dois mundos, o real caído e o ideal restaurado. De um lado, somos desafiados diariamente a confrontar os valores do sistema anti-Deus que se infiltraram na história por intermédio de Satanás e de nosso pai Adão. De outro, somos encorajados a viver os valores do reino de Deus neste mundo como uma antecipação daquilo que esperamos viver quando “o reino do mundo se tornar de nosso Senhor e do seu Cristo, e ele reinará pelos séculos dos séculos” (Apocalipse 11.15).
Em síntese, em tempos adversos como os nossos, pensar na vida cristã a partir da metáfora da peregrinação reafirma aos nossos corações o quanto nós ansiamos por outra pátria — por mais que amemos o Brasil, nossa pátria é o reino de Deus!
A metáfora da peregrinação também é um golpe fatal em nosso narcisismo, pois ao invés de amarmos nossa própria imagem, assumimos que nossa identidade neste mundo tem caráter transitório. Nossa real identidade está em Jesus Cristo e ela ainda não se manifestou plenamente.
Por ora, a vida cristã é um inevitável paradoxo. Nós compreendemos que estamos de passagem neste mundo, mas continuamos a viver aqui e agora como se já estivéssemos na nova criação.
Paz e bem
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